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Não foram vários meses de silêncio e de vida claustral, foram vários meses de hibernação. O carro esteve tanto tempo parado que, certo dia, fui por ele e não pegou. No que me diz respeito, não é que me tenha falhado alguma funcionalidade biológica, mas comecei a considerar o corpo e a actividade física como abstractos, isto é desligados da sua materialidade. De certo modo, tinha recuado no meu tempo biológico àquela circunstância juvenil de quem vive na abstracção geométrica de uma cidade e na abstracção de uma agenda profissional. Mesmo fazer exercício físico é uma abstracção de exercício. Toda a realidade "real" se perde na hiper-realidade virtual dos jogos mentais que alimenta a contemporaneidade e a psicopatologia da presente era.
Ora, fora a isso mesmo que eu tentara fugir quando me retirei da vida da cidade para a vida do campo. Foi para reencontrar o corpo na sua materialidade, para reencontrar a terra, para reencontrar a vida e recuperar a realidade.
O Tremontelo e toda a actividade que lhe está associada proporcionam a satisfação desses quesitos. Mas, sempre que chega o Inverno, há mais vida de casa, o fastio da solidão que decorre na eternidade dos cinco dias úteis da semana, o silêncio assolador das árvores despidas, o sedentarismo e a compulsão a comer e a dormir a desoras.
Ontem não foi assim: choviscara durante quase todo o dia. À noite, depois do jantar, abri a janela cá de cima para deixar entrar um pouco de ar fresco, porque a casa, com todas as janelas fechadas quase todo o dia, tinha abafado. Veio-me um cheiro a terra húmida tão intenso que me enebriei. O perfume das rosas descobri-o depois, a subir em espiral. Tomei um banho frio antes de me deitar. A água quente fora desperdiçada em lavagens e não houve tempo para o escasso sol repor o nível térmico do depósitos. Deitei-me experimentando todos os meus sentidos, inclusive a audição do concerto de melgas, e comecei a expurgar as minhas entidades conceptuais. A realidade, finalmente, voltou.