No hospital participei em combates de duas guerras: a da comunicação social, à noite, debaixo dos lençois; e a da alimentação, durante todo o dia, às escâncaras.

Havia no quarto uma luz ténue, daquelas que se dizem de presença, e no corredor da enfermaria uma luz quase normal mas um tanto empalidecida, o que permitia circular com facilidade e fazer inúmeras coisas sem incomodar os residentes. Acostumei-me a ligar o iPad debaixo dos lençóis e a seleccionar um canal de televisão. O colega da direita ressonava uma melodia que finalizava sempre em modos de trovoada de Verão. O do outro lado, porém, mumificava. E eu levava o programa noite adentro até ao desfalecimento da bateria. Foi assim, em directo, por baixo dos lençóis, que assisti à invasão da Ucrânia. Durante o dia dormitava, um sono interrompido pelas refeições e pela liturgia hospitalar. O camarada da direita era um compincha, um homem inteligente e com conversa agradável. Falávamos da guerra que acabara de eclodir. Na altura ainda não sabíamos que a guerra não era " guerra" mas uma "operação militar especial" e que este eufemismo escondia a carnificina, o holocausto, o terror absoluto.

À medida que o tempo passava tornava-se evidente que estava com uma permanente obstipação e que, claramente, precisava de mais fibras na minha dieta e, consequentemente no meu intestino. Conseguir no hospital uma alimentação adequada ao meu estado iria ser, como se comprovou, uma luta insana, desesperadamente perdida.

 

Hospital

 

As tantas, não sei se de noite, se de dia, tive um sonho estranho, profético, como aqueles sonhos do faraó no Egipto ou de Nabucodonosor na Babilónia que nos relata o Antigo Testamento. Contando brevemente: As pessoas deixaram de ter merda nos seus intestinos. Isso passava-se na enfermaria, no hospital, na cidade, no País, na Europa, em todo o mundo. A quintessência imaterial da merda estava a ser sugada por uma equação quântica para uma nuvem, cujo recorte aparentava estranhamente o da Federação Russa, e, a partir daí, era despejada sobre a Ucrânia. Nos intestinos de cada pessoa ficava apenas uma cortiça inamovível. Isto vai piorar, pensei quando em vigília. Não sou crédulo em matéria do significado dos sonhos, mas aquele revelava que o meu cérebro queria dizer-me algo que não conseguia trazer para a luz da consciência. Eu estava profundamente convicto de que aquilo iria piorar.

Preferi, todavia, deter-me em explicações mais plausíveis, mais terrestres, para a ausência persistente do tráfego intestinal: A deficiente alimentação hospitalar não me estava a proporcionar as fibras indispensáveis para formar o bolo intestinal, a inatividade gerava preguiça intestinal e, o cúmulo, o receio fazia-me evitar todo o contacto com o músculo anal ainda não cicatrizado. Finalmente, a médica decidiu pela alta concordando que em casa teria a dieta adequada e que o problema da obstipação acabaria por resolver-se por si. Ao fim de uma dúzia de dias de prisão de ventre, e comidas muitas nabiças da horta, comecei a sentir as fezes escaparem-se, lenta e cautelosamente, do meu corpo. Para elas, era a liberdade; para mim, um exorcismo.

Afinal, o sonho não tivera qualquer valor preditivo. A guerra encarniçou-se e, manifestando o seu rosto divino, degenerou em genocídio. Afinal, os russos tinham merda própria, acumulada ao longo de séculos de tirania. A revolução de Outubro fora apenas um efémero fogo fátuo.

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