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Ele é um grande preguiçoso para escrever, estou eu a ouvir a voz interior do meu pai, ele que era um aficcionado da empresa dos correios para que trabalhava e um apóstolo da comunição escrita à distância de um selo. Mais o proveito que a fama, que até tinha a fama de escrever com facilidade e de escrever bem, me acompanhou a vida toda, desgraçando-me namoros e outras oportunidades para me comprometer com a vida social. O que mais me moe a consciência é saber do desgosto, ou seria desilusão, ou apenas uma ligeira tristeza, que o meu desleixo provocava no meu pai que se batia com zelo evangélico pela suprema dignidade do objecto postal.
E não é que não tenho emenda? Desde Agosto sem vir aqui escrever um postalito, lamber o selo digital e enviá-lo à velocidade de um clique. Também não respondi à Justine, uma correspondente à séria, que sabe entender-me em todos os 4 níveis possiveis de leitura, o sentido literal, o segundo sentido, o sentido oculto e o não-sentido. Agora, é a Graça que pede mais escrita como quem encomenda livros na Amazon. Dá para entender que sou mesmo um grande preguiçoso para escrever.
De Agosto para cá passou-se muita coisa, claro. O homem não foi à Lua, não foi descoberta nenhuma cura radical para o cancro, a humanidade não se uniu para erradicar a pobreza e a disparidade de oportunidades, não foi invertido o ciclo de destruição do planeta-mãe. Pelo contrário, por cá houve incêndios e seca, toda a gente culpou toda a gente, como é natural deste povo, ganhámos muitas coisas saindo do lixo e do anonimato para a boca dos povos, andamos por cá todos bem a darmos ares de gente importante, falamos tu cá, tu lá, com os donos disto tudo e com os senhores do mundo. Grandes como somos, descobrimos a imensidade da teia de corruptos muito à medida da nossa grandeza e novo-riquismo recentemente alcançados. Lá fora, quem manda no mundo são os doidos varridos. Não vou nomeá-los, toda a gente que vê televisão sabe a quem me estou a referir. Quem põe e dispõe dos mandantes são os chacais do grande capital e das máfias. Tudo o que se ganhou desde o fim da última guerra mundial está a esboroar-se e a desaparecer: o estado-providência, o estado de direito, o estado laico, o estado democrático. Só nos resta o estado a que isto chegou.
Aqui no Tremontelo passou-se muito pouca coisa: primeiro, veio a calor e deu cabo disto tudo; depois, veio a geada a acabou o servicinho. Agora, que despontam os primeiros calores do ano e o dia se deita mais tarde, as ervinhas que se haviam refugiado debaixo do solo, como é hábito dos refugiados em tempos de guerra, começam a vir à superfície, numa tal abundância que me mantêm o dia ocupado a mondá-las. Na última semana foi o clímax do desatino felino. Hordas de machos de unha afiada a provocar os machos de cá e a fazerem-se às damas. Até o "Gay" saltou para cima da prima, vejam lá. A comida que lhes ponho lá fica a murchar nos pratos, tão pouca é a fome do estômago que a outra fome impõe. Vorazes, papam as gatas e o desgraçado do "Gay" que até já lhes foge para cima do sobreiro ao lado da casa, onde fica a maior parte do tempo como o bardo da aldeia do Asterix. O Tixa andou desaparecido uns tempos, mais de uma semana, depois lá voltou esfomeado. Durante dois dias comeu do seu prato e do prato dos restantes e depois lá voltou, sabe-se lá para onde e ainda não apareceu.
O Inverno andou frio e, alguns dias, muito chovoso. Muito do meu tempo foi passado dentro de casa. Os afazeres de uma casa ocupam o tempo todo mas alguns tornam-se praticamente agradáveis quando está frio, como passar a roupa a ferro ou fazer assados no forno. À noite é mais a ver televisão no 2º canal porque todos os outros são uma merda viscosa e nojenta mesmo quando não dão futebol. A ver é como quem diz. A dificuldade é sair de ao pé do borralho e ir dali para a cama, com o pescoço todo dorido das cabeçadas no vazio, e ter que despir todas as camadas de roupa e vestir o pijama, tomar os comprimidos para a velhice e lavar os dentes, obrigação a que geralmente me furto a desoras. E o que faço no tempo restante? Olha, entretenho-me no portátil com o Portal das Angiospérmicas. Ele é tratar das fotografias, reformular a estrutura ou o aspecto do site, completar os artigos ou iniciar novos, pesquisar todo o tipo de informação sobre cada espécie de plantinhas, aprofundar conhecimentos de botânica e de horticultura, tudo isto sabendo que não existe o olho divino que acompanhe e avalie a minha produção e que, jamais, qualquer ser humano transumante do ciberespaço venha a tomar conhecimento da sua existência.
É quando dou por isso que me ponho a pensar sobre a condição humana. Podíamos fazer como os gatos: limitarmo-nos a viver. Mas não, temos a mania de acrescentar à vida, que não tem utilidade, esta preocupação de fazer sites só porque sim. Porque é a fazer sites, ou a fazer outra inutilidade qualquer, que descobrimos que somos, quem somos e que somos o quê. Ou, pelo menos, tentamos descobrir. Sobre mim só descobri que somos muitos, uns que escrevem e outros que lêm. E cá vamos contando estórias uns aos outros como velhotes reformados a jogar à sueca nas mesas de pedra do jardim público. Quando nos deitamos, só pensamos em nos levantar cedo para ir ao encontro dos outros nos bancos do jardim. Assim se passam os dias. As madrugadas a sucederem-se às noites.