O mundo não pára de dar voltas e, com ele, as nossas cabeças ... que andam à nora. 

Enquanto não nos afastamos do habitual, não percebemos as suas lentas mudanças. Geralmente, andamos confiantes no nosso mundo e acreditamos que o nosso mundo nos é fiel. As nossas divagações sobre os lugares, o espaço, o tempo, as coisas, os outros e nós próprios são certezas. Esperamos que o mundo se cumpra como deve ser.

 

Quando era pequeno e usava calções, fui-me dando conta que, escondida por detrás da minha vida presente, existia a vida dos outros, actuais e desaparecidos. O mais óbvio é que me antecedera a vida dos meus pais. Eu só a conheci pelas narrativas deles e por uma escassa quantidade de fotografias a sépia ou a preto e branco. Através deles vim a saber que havia a vida dos pais deles, que eu chamava avôs, e a vida dos irmãos deles, que eu chamava tios. A sua existência anterior era narrada através de histórias, de coisas que tinham acontecido em momentos precisos e tinham um carácter especial, quase épico. A essas vidas faltava-lhes a coesão do tempo corrente e fluido, eram ilhas isoladas no grande e obscuro oceano do tempo ido. Com os ensinamentos do meu pai, depois dos professores e, mais tarde, dos livros passei a chamar-lhes História, maiusculando sempre a palavra para caracterizar o seu ser excepcional.

Com o tempo, a História passou a ser mais do que a da minha família. Era a História do Mundo que tinha povos que apareciam e desapareciam nos lugares em que provisoriamente se instalavam, povos que tinham línguas e professavam credos espantosos e tinham usos e vestuários peculiares. E o que vi de espantoso e de mágico na minha primeira colecção de cromos, as "Raças Humanas"! Com a escola, a História passou a encher-se de guerras e de chefes militares: Viriato contra os romanos, os cristãos contra os mouros, os filhos contra as mães, os portugueses contra os espanhóis, os portugueses contra os árabes no distante Oriente, os portugueses contra os franceses invasores, as campanhas de África, as grandes guerras mundiais.

As grandes guerras mundiais haviam sido devastadoras: milhões de mortos, cidades e campos arrasados. Não foi difícil convencer-me que, afinal, era um sortudo. Quando nasci "já isso tinha passado à história". A humanidade trilhava a via do progresso e era impossível o retorno à barbárie. A haver guerras, se não fosse possível evitá-las, seriam civilizadas ocorrendo no estrito respeito do Direito Internacional. Havia a Guerra Fria que era uma espécie de balde de água fria em cima das cabeças mais excitadas. Aqui e ali havia atritos e fricções que não envolviam toda a humanidade e eram suficientemente longínquos para criar uma fronteira mental. Em suma, não pertenciam à História, pertenciam à banalidade das notícias das televisões.

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Um dia estava acamado no Hospital de Santarém a recuperar de uma cirurgia quando a Federação Russa invadiu a Ucrânia com crueldade e perfídia e a História regressou. O mundo já não estava no seu normal depois do desenvolvimento da pandemia. O choque abalou-me os alicerces de todas as convicções e certezas. O nacional-populismo retornara trazendo consigo todos os fantasmas do passado. Já não era só nos Estados Unidos, na Grã-Bretanha, no Brasil, na União Europeia que as democracias perigavam, para já não falar da China, Coreia do Norte, Irão, Síria, ditaduras declaradas. O mundo ruiu irreparavelmente e nos seus escombros vagueia o "lupus hominis". 

 

 

 

 

 

Glória ao valoroso povo da Ucrânia esperança da humanidade!

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