Quando era pequeno e usava calções, passava longas temporadas na sala da casa dos meus pais, que dava para a rua. De Inverno, esmagava o nariz na vidraça da janela e espreitava através dos quintais que separavam a casa do Mendonça da casa do Aleixo a nesga de verde do Monsanto que se alcandorava até ao Presídio e que contrastava com a cinza parda e muda da rua. No Verão, era o contrário, a rua enchia-se de cores, de movimentos e de ruídos, o coração acelerava e perdia a vontade de estar ali. Nas estações equinociais espreitava o azul do céu e algumas núvens que por ali se perdiam e coisas estranhas se passavam na moleirinha como então se dizia. Houve uma altura em que tentara imaginar um ponto no espaço, o mais distante que pudesse localizar, e pensava se o mundo acabaria ali. Tornou-se-me evidente que por detrás desse ponto haveria sempre outro ponto, e outro por detrás deste, e que era impossível imaginar onde acabaria esta procissão de pontos. Tinha acabado de forjar o conceito de infinito e fiquei tão exaltado com isso que, nos dias seguintes, ia sempre à janela espreitar o infinito. Foi assim que cedo ganhei alguma familiaridade com conceitos majestáticos que sempre me ajudaram a configurar a finitude e a fugacidade da vida.
Depois, entrei para a escola. Os conceitos passaram a entrar através das lições e dos livros, bem ordenados, apresentados e embalados como se fossem uma mercadoria de luxo. Tive que arranjar espaço na cachola, como se dizia também naqueles tempos de dialectos pueris, para acomodar as ideias sistematizadas com os saberes fluidos saídos da intuição e deambulação pessoais. Este processo conduziu-me, às portas da maioridade, ao conforto de uma vida certinha e segura de percalços. Fiz a tropa, porque não encontrei maneira de me escapar, concluí o curso que fora interrompido pela tropa, tive vários empregos e múltiplas formações, estabeleci família e tive uma roda de amigos. Tirando alguns percaços, tive sempre saúde e financeiramente lá me ia safando, procurando safar-me cada vez melhor.
Começando a ficar serôdio, na casa dos quarenta, levei um abalo nas segurança e nas certezas dos anos anteriores e adoptei por lema que a única certeza na vida é que não há certezas. Trabalho, casamento, família e amigos, e até saúde e dinheiro, são um dia postos à prova. Agarrei-me à bronca, como se dizia, e passei a conduzir a minha vida como um condutor que acabara de ter um acidente ou levado uma multa. Uns dias chove, uns dias faz sol. E também há aqueles dias de sol em que desata a chover.
Estará porventura o leitor a pensar: pois é, são as idades da vida! Como se a vida fosse uma linha férrea com as estações e apeeadeiros imóveis nos seus lugares. Pois não é assim. O corpo cresce, desenvolve todo o seu potencial e depois vai a pouco e pouco definhando até surgirem verdadeiros handicaps. Mas não é assim a moleirinha, a cachola, a cachimónia ou como quiserem chamar àquilo que está entre as orelhas. Esta quer é mundo, vive para o mundo e não tem evolução própria: o que evolui cá dentro é o mundo a evoluir lá fora.
Um dia atraquei no porto de Luanda, aterrado de ir para a guerra, revoltado por ter deixado a minha vida para trás. Fui esquecendo cidades, ruas e salões. Fui esquecendo a família e os amigos. Esqueci as boas maneiras e adquiri modos rudes. A sobrevivência, a coragem e a camaradagem tornaram-se valores por excelência. Adorei as florestas e a savana.
Certo dia, passado um ano, vim de férias ao Puto. Com as hospedeiras da TAP, que na altura eram todas jovenzinhas e davam ares de capa de revista, levantei um pouco da cortina que me separava do que tinha deixado para trás há uma dúzia de meses. As fardas tinham alguma familiaridade com o universo militar e permitiam lançar uma ponte para a feminilidade que caracteriza a civilização. Já Lisboa, passados um ou dois dias, me pareceu uma cidade distante e abandonada: todos os que conhecera ou estavam na tropa, ou no estranjeiro, ou tinham casado e estavam com filhos e não podiam aparecer. Tudo me pareceu estranho. Acrescento, muito estranho. Um dia em que subia a Rua Garrett, no passeio do lado oposto à Valentim de Carvalho, ouvi o som de uma faixa de disco, não me atrevo a chamar-lhe música, que me deixou aterrado. A sonoridade que me chegava aos ouvidos nada tinha a ver com tudo o que tinha ouvido de música até então e os tantans das palhotas africanas tinham mais familiaridade com Mozart, Brassens, o fado ou o nacional-cançonetismo do que aquilo. Tão estranho que até a própria letra parecia adivinhar o meu estado de espírito:
Oh, baby, baby, it's a wild world ...
Na praia da Caparica despedi-me para sempre da minha primeira namorada e passei o resto das férias sozinho até regressar a África, a minha terra de adopção.
Oh, baby, baby, it's a wild world ...
Quando a guerra acabou para mim andei uns tempos aos papéis. Fui reintegrado no trabalho que tinha, vivia contra-vontade em casa dos meus pais, por vários impedimentos não consegui entretando voltar aos estudos, encontrava-me clandestinamente com jovens contestatários, viajava, meti-me no teatro, andava por aí. Do mundo do sossego do sertão passei ao mundo alucinante e desenfreado da intervenção. E também da suspeita, sabendo que andava sempre com os olhos dos esbirros do regime cravados nas costas à espera do mais pequeno deslize. Nessa altura ainda não havia partidos. Havia, à superfície, a Situação e, no submundo, a Oposição. A vida era algo que nem subia ao céu nem punha os pés na terra. Pairava.
No Funchal a bordo do Infante D. Henrique no fim de ano de 1972
Prenúncios de que algo estava a acabar e algo estava a nascer:
- 01-01-72: Falecimento de Maurice Chevalier
- 22-01-72: O Reino Unido, a Irlanda e a Dinamarca ingressam na Comunidade Económica Europeia, CEE
- 05-09-72: Onze atletas israelitas são assassinados por terroristas nos Jogos Olímpicos de Munique.
- 12-10-72: Agentes da PIDE/DGS matam a tiro o estudante do Instituto Superior Técnico, José Ribeiro dos Santos, militante do MRPP, na sequência de uma reunião de protesto contra a repressão policial.
Oh, baby, baby, it's a wild world ... (https://youtu.be/Jta56wBl7SM)
Posfácio: A mudança do mundo não parou de mudar. Mas isso são águas para outros moinhos. Continua