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Lembro-me do que aprendi na faculdade nos anos 80 acerca dos esquemas. Revi este assunto numa outra perspectiva, uns bons aninhos mais tarde, quando frequentei o curso de Ciência Cognitiva. No essencial, um esquema é um conhecimento prévio, esquemático como o nome diz, que se aplica a uma situação nova facilitando a sua interpretação. Difere do preconceito, que é rígido e imperativo, o que não vem agora ao caso.
Sem deter um número razoável de esquemas é impossível compreender o mundo. E compreender o mundo é reconhecer em situações novas aquilo que já é conhecido. Sei que para andar de transporte público devo adquirir um título válido, seja um passe, seja um bilhete adquirido na estação, no interior do veículo ou na Internet.
Raramente as variações são locais: depois de inventadas tendem a espalhar-se por todo o mundo e isso facilita- nos imenso a vida. Aqui, em Cambridge Street, quando entro no 69 para ir para Lechemer ou para Harvard, puxo da carteira, coloco-a no leitor que emite um som e o motorista diz-me thank you. O facto de o motorista me agradecer tem a ver com a realidade - Boston não é Lisboa - e não com o esquema. Isso é um facto digno de nota, é notícia, é aquisição de conhecimento (a raiz latina para conhecimento, cognoscere, é a mesma de "notícia" e de "notoriedade").
Ao longo do tempo, porém, as variações dão origem a noras formulações dos esquemas. Os nossos avós jamais poderiam imaginar uma compra pela Internet; os nossos netos vão ficar de boca à banda ao saber que havia outras maneiras de comprar coisas.
Assim, quando ando aqui pelas Américas, já sei como é que as coisas se vão passar e só tenho que me informar dos pequenos detalhes e das alternativas que tornam as viagens mais cómodas e baratas. Olha: as lojas à 1 PM estão fechadas.
As vezes as coisas que vemos no estrangeiro não encaixam nos nossos esquemas. E aí que as coisas se tornam interessantes. São essas as coisas que vamos contar quando chegarmos. Estou a ver as narrativas mirabolantes dos viajantes que chegavam das terras incógnitas no crepúsculo da Idade Média, como o relato de Antonio Pigafetta na sua chegada ao Brasil. Qual é a etimologia de "maravilha"? E mirabilia , aquilo que espanta. Mas, a realidade é espantosa quando não se enquadra nos nossos esquemas.
Aí, nascem as narrativas do maravilhoso.
Ao contrário da tendência para exagerar, que sendo voluntária e consciente, é necessariamente lógica, e prende-se muito com as vaidades pessoais, próprias ou de outrem, a hipérbole, ou o esticar as coisas para mostrar como elas são grandes, flui fora dos holofotes e é inócua. A pequena mentirola, por seu lado, serve para fazer passar a realidade quando ela não se encaixa no nosso conhecimento.
Embora os esquemas sejam universais para um dado contexto cultural e histórico, o seu uso é muito particular e prende- se com a história e os interesses individuais de uma pessoa. Quando viajamos os dois, ela vê coisas que eu não veria se ela não me chamasse a atenção para elas: "olha, o azul daquela casa é muito giro". O contrário assenta como luva à situação inversa. Onde tinha ela a cabeça quando passámos por um jardim deslumbrante com espécimes raros? Esta observação vai levá-la a retorquir. Bolas! De que está ela a falar? Se eu vi o quê? Respondo sempre que não me lembro, o que é mentira. Como posso eu lembrar-me do que não vi?
Os esquemas competem entre si para se aplicar à realidade. Uma conversa entre duas pessoas sobre um evento é uma luta entre os esquemas dominantes de cada uma. Não se trata de discutir ideias sobre a realidade, trata-se de discutir a realidade dentro da própria realidade, ou seja, numa dada situação como devo comportar-me? Para onde devo dirigir o olhar? Em que é que me devo concentrar? O que reter em memória?
Mas essas lutas dão-se também, e sobretudo, na cabeça de cada um de nós. Esta realidade é melhor entendida usando o esquema A ou o esquema A'? Por isso, gosto de revisitar os sitos que amo. Em 2013 apaixonei-me pelo Arnold Arboretum. Passados 6 anos tive que o revisitar. Como foi muito fácil reconhecê-lo, pude pesquisar novas facetas que respondem aos meus interesses. Fui lá encontrar respostas para perguntas que levava na algibeira. Porque o conhecimento da realidade tem muito a ver com o que queremos fazer a respeito dela.
E muito pouco, ou mesmo nada, com a verdade.