Não é por falta de outros assuntos sobre que pensar. Há-os, e há-os de mais. Basta ver o estado calamitoso em que está este nosso mundo, a falta de alternativas credíveis para este nosso país e os contextos desta nossa vida, os nossos, os das nossas famílias e os dos outros. Mas o assunto que realmente me tem dado tantas voltas, quer à cabeça, quer ao estômago, é o mundo. Sim, o mundo.
Se dissermos esta palavra de viva voz, repetida e isoladamente, mesmo que a voz seja interior, acaba por se enraizar no nosso sentir uma estranheza radical. Digo 'radical' em sentido etimológico, daí o redundante verbo 'enraizar'. A estranheza que sinto começa pelo esvaziamento do sentido da palavra, mas o que quer mundo dizer?, e acaba na palavra ela mesma, na sua materialidade fonética que acaba por ser recebida como se de palavra estrangeira se tratasse.
A tudo isto chamo o estranhamento do mundo.
Para recuperar o velho, ou um novo, sentido da palavra, adoptei um método que consiste em verificar se a palavra contrária oferece um sentido concreto, compreensível e familiar. Verificando que tal sentido existe e é compreensível, infere-se pela sua negação o sentido da primeira.
E é esse o caso e a palavra é 'imundo'. Imundo é aquilo que é sujo, porco, desorganizado, desarrumado. Equivale a outra palavra que tem a sua origem no grego antigo, o 'caos'. Procedendo deste modo, retomava a acepção clássica do termo 'mundo' que mais não poderá ser que tudo aquilo que é limpo, asseado, organizado e arrumado. O mundo é o modo como nós limpamos e embelezamos a realidade. "O mundo não é o que existe, mas o que acontece."(Mia Couto, O Último Voo do Flamingo)
O Génesis dá-nos conta de como deus (ou Elohim, 'os deuses') criou o mundo. Na realidade a Bíblia não nos diz que deus (ou os deuses) criou a realidade que existe. Ele (ou eles) criou o mundo pondo ordem no que já havia, separando o céu da terra, a luz das trevas, dividiu as águas deixando umas por cima e outras por baixo do firmamento, da terra extraíu as ervas e as alimárias, pôs candeias no firmamento, umas para iluminar o dia, outras para iluminar a noite e até transformando a natureza selvagem num jardim, o paraíso do Éden.
Deus (ou os deuses) criou o homem 'à sua imagem e semelhança '. O barro de que fez o molde já existia, o Geppetto divino limitou-se a soprar lá para dentro, em geito de lhe dar corda, para que o simiesco boneco se animasse e à sua imagem e semelhança se pusesse também a criar mundos.
Tal como deus tem o seu mundo, cada grupo social, cada indivíduo humano tem o seu mundo próprio. O mundo é a forma como cada um organiza a realidade estranha, o caos primitivo, tudo o que pre-existe ao nascimento da mente. A morte e o desaparecimento de civilizações são o 'fim do mundo', não o fim da realidade que continuará a ser o que é, independente da vontade de deus, das civilizações ou dos indivíduos.
Entre a sua criação e o seu fim, o mundo de alguém é o lugar da sua passagem e está inexoravelmente associado ao curso do tempo e ao fluxo da sua consciência. Na idade média, mundo e século correspondiam-se, eram o mundo das coisas humanas e temporais cá de baixo, contraposto ao mundo das coisas divinas lá de cima. "Mas Ele seguiu dizendo-lhes: “Vós sois daqui de baixo; Eu Sou lá de cima. Vós sois deste mundo; Eu deste mundo não sou. " (João, 8,23)
Mundo tem também um sentido cosmológico, é todo o universo físico visível. O mundo físico não tem limites precisos, acaba na última linha de horizonte que o nosso olhar enxerga. Para uns, um cubículo reduzido é quanto lhes basta para viajar por esse mundo fora, enfrentar toda a espécie de riscos e desafios, aventurar-se por ambientes inóspitos, provar alimentos exóticos, ver ambientes e costumes nunca vistos antes. Outros vão lá mesmo que as energias se esgotem na viagem e a visão se turbe com o cansaço. Outros sentam-se a ver filmes e programas televisivos. Confesso que sou daqueles para quem um pequeno lugar dá para conhecer o mundo todo e que se afadigam com as viagens e os transportes.
Criar um mundo, para um ser humano, pode ser tudo e pode ser quase nada. Arte, poesia, técnica, economia, guerra, política, educação, ciência, música, entretenimento são modos de apresentação dos mundos criados pelo homem.
A história dos mundos é uma história de criação e de destruição. Um mundo desaparece quando é apagado da memória.E a história humana é uma história de destruições irreversíveis como documentam, para referir apenas uma ínfima parte, a destruição do Serapeu e da Biblioteca de Alexandria pelos cristãos a seguir ao brutal assasínio de Hepatia, o extermínio de livros pela Inquisição, a destruição de templos e cidades maias, aztecas e incas, pelos cristãos espanhóis, o saque e a destruição de livros judaicos pelo III Reich, a destruição das estátuas de Buda pelos talibãs, a destruição pelo Estado Islâmico do templo de Baal-Shamin, em Palmira, e de outros sítios históricos e culturais do Iraque. O fenómeno é minuciosamente analisado no romance distópico de Ray Bradbury, Fahrenheit 451, que mostra que o que se pretende destruir é a memória, fazer desaparecer um mundo ou parte dele.
A alternativa da destruição, quando esta não basta e há maneiras de continuar a preservar a memória, é o silenciamento que assume diferentes formas, desde o lápis azul da censura fascista portuguesa, passando pelas conversões em massa, a confissão e a denúncia, e desaguando no massacre de populações inteiras, de etnias e de comunidades religiosas. Uma forma recente e mais "civilizada" de silenciamento é a circulação de notícias falsas, comentários mirabolantes e o descrédito da imprensa da Nova Ordem engendrada, entre outros, por Trump e Erdogan.
"Na vida de hoje, o mundo só pertence aos estúpidos, aos insensíveis e aos agitados. O direito a viver e a triunfar conquista-se hoje quase pelos mesmos processos por que se conquista o internamento num manicómio: a incapacidade de pensar, a amoralidade e a hiperexcitação." F. P., O Livro do Desassossego)
Quando deus (ou os deuses) soprou para dentro do boneco de barro, que era um símio com uma mente evoluída, o ar pestilento que exalou ia completamente infectado de código malicioso. A mente de Adão, que até aí representara a realidade, passou a criar mundos virtuais. A história do homem é a história de uma queda inicial. Mas a queda continua em aceleração e é vertiginosa: no fundo do abismo encontram-se as redes "sociais", as personalidades sombrias, a ilusão do conforto, do consumo e da fuga à realidade como formas artificiais de felicidade e a exaustão dos recursos naturais.
A seguir ao homem virá a sociedade de máquinas inteligentes e conscientes. Seremos todos, nós e os nossos mundos, esquecidos. O deus "ex homine" implodirá e será substituído pelo verdadeiro deus "ex machina".