Hoje em dia, os sítios de chegada são os sitios de onde mais queremos fugir e o mais depressa possível. Digo isto porque os sitios de chegada raramente são os sitios de destino. É o caso do Logan, o aeroporto de Boston, localizado numa ilha e ligado por terra à cidade por dois túneis.
A viagem de ida correu razoavelmente bem, sem incidentes ou desconforto, tirando a escala em Amsterdão que apenas teve o inconveniente de alongar a viagem por mais duas horas. Como facilmente se conclui, a viagem foi longa e, à medida em que o tempo passava, crescia em mim o desejo que este acelerasse, e o desejo era o futuro a querer ocupar o lugar da ansiedade que era o presente de então. Na minha idade, é um desejo suicida: o único desejo saudável é o de que o tempo retarde e, se possível, que pare e o presente se eternize.
Despachadas as burocracias alfandegárias fui azinha (ou seja, com as asinhas dos pés a cem à hora) ter com a Graça. Os momentos que se seguiram não vêm agora ao caso, assim o determina o pudor censório guardião da privacidade das emoções a que naturalmente temos direito. Passado o cerimonial do encontro, dirigimo-nos para o exterior do terminal para apanhar o T na Silver Line.
O The T, ou The Tube, é a designação bostoniana do metro. A rede de metro de Boston abrange, além desta cidade, as cidades de Brookline, Cambridge, Charlestown e Somerville, tão chegadas umas às outras como Lisboa à Amadora ou a Loures. Quando usamos o nome de Boston nas conversas do dia a dia, referimo-nos muitas vezes à Great Boston, a grande conurbação daquelas cidades. A Silver Line é a linha desenhada a prateado no mapa octalinear da rede. Diga-se em àparte que tenho um secreto fascínio por este tipo de mapas produzidos por recurso a um algoritmo genético, uma técnica de computação que utiliza a selecção natural para encontrar e optimizar soluções para problemas complexos. Dito isto - tinha que o dizer! - e voltando à Silver Line, as suas composições percorrem um circuito ininterrupto que liga Logan às principais estações em Boston das linhas com outras cores. Na parte que corre na cidade, sobre rodas e não carris, a composição vai a descoberto até chegar às proximidades do túnel, onde se enfia desafiando as aguas do mar sob as quais desliza velozmente até emergir nas proximidades do aeroporto. Uma característica notável da Silver Line, sobretudo para quem acaba uma viagem transatlântica e trespassa uma fronteira, não tanto administrativa, mas horária e de moeda, e que ainda não teve ensejo de consumir para arranjar uns trocados, nem tempo e oportunidade para obter um passe, é que a linha é gratuita e o acesso às outras linhas outbound, após transbordo, continua gratuito.
Estávamos eu e a Graça à espera, quando por instinto apalpo os bolsos e dou por falta do iPhone. Ele nem nos bolsos, nem na mochila, nem nas bolsas exteriores da mala. Confirmado duas e três vezes. Eu, o moralista obsessivo do planeamento, da previsão de riscos, da verificação e do controlo, perdera um bem que odiava mas do qual iria depender nas minhas solitárias caminhadas nas extensas verduras de Boston e arredores. Denegria-se-me a autoimagem e o amor próprio mergulhava num monte de esterco, assim me via por dentro enquanto socava o rosto da alma desapiedadamente. A Graça, serena e com os pés na terra, trouxe-me de rastos ao balcão da companhia aérea e com calma, expôs o assunto e transmitiu os dados solicitados pela funcionária, que me ia extorquindo a conta gotas, à laia de tradutora, enquanto eu, amarfanhado na pequenez do meu ser e aturdido pelo sucedido, ia dando voltas à memória, que raiva, telefonara à Graça quando aterrámos, teria posto o telemóvel no bolso das calças e este caíra para o assento, tê-lo-ia deixado no bolso das costas da cadeira da frente, caíra ao chão quando ergui os calcanhares para tirar a mala lá de cima da bagageira da cabine? Enquanto cismava a minha vida desgraçada, outros processos iam ocorrendo nas infinitas linhas paralelos do universo. Numa delas, a funcionária do balcão telefonou para o pessoal encarregado nas limpezas a bordo, confirmou-se o achado de um iPhone, que esperasse calmamente sentado que alguém viria trazer o aparelho ali ao balcão. A Graça também dizia não sei o quê que eu ouvia num som rouquenho e alonjado, enquanto repetia o filme interior dos meus movimentos no final da minha permanência do avião. Apareceu um senhor e toda a gente se iluminava de sorrisos sem que eu percebesse porquê. Pediram-me o indicador que apuseram na covinha do iPhone e um ecrã iluminou-se e mostrou o que sempre me pareceu as cadernetas de selos ou de cromos que alegraram a minha infância. Toda a gente irradiava uma impante alegria a que me juntei a esforço, mas agora estava noutra, a experimentar um déjà vu. Na outra vinda a Boston em 2013 sucedera exatamente o mesmo! Quem ainda não percebeu que a vida é o eterno retorno do mesmo, não percebeu nada da vida.
Lá fomos apanhar a linha verde para Lechmere, em Cambridge, e o autocarro 69 para a Cardinal Medeiros, onde morámos quase um mês.