{jcomments on}
Agora é que desatou a fazer frio a valer. Tem sido assim nos últimos dias: o sol começa a pôr-se, a temperatura cai a pique e torna-se impossivel continuar no exterior. O interior está relativamente bem aquecido e, como não há muito a fazer, deixo-me ficar horas a fio ao computador a trabalhar no inventário das plantas. É trabalho que paga mal, mas que não é muito exigente. A cabeça fica meio disponível para pensar em paralelo noutras coisas e ao cabo de um ror de tempo dou com o acumulado dos frutos desse trabalho. A jeito de balanço, posso garantir que já consegui unificar os três sites, corrigir uma imensidão de erros, introduzir melhorias significativas, mas, mesmo assim, não me dá para ver peva ao fundo do túnel, como é hábito dizer-se. É um trabalho parecido como o de dispor os tarecos numa sala da casa. A simples entrada ou saída de uma peça de mobiliário força-nos a arrastar os outros todos para novas posições, de um lado para o outro, até restabelecemos uma nova harmonia. O processo não está garantido à partida. Embora algumas intuições dêm certo à primeira tentativa, requerem-se geralmente múltiplas e variadas iterações. O mesmo se dá para um quadro que se ponha na parede que logo vai embirrar com a arrumação dos que lá estavam. E é assim com muitas coisas, suponho que essa seja a lei universal que governa tudo o que há no mundo. Um pouco mais tarde do que é habitual para a maioria das pessoas - estou eu para aqui a supor - atiro-me ao jantar, desde o prepará-lo até ao arrumar da cozinha e, depois, vou sentar-me a ver a série de televisão que estiver a passar na RTP2. Este é o único momento que dispenso à caixinha mágica a qual tem o grande conveniente de me iniciar no primeiro sono da noite. É claro que a transferência do sofá para a cama, quando acordo no meio de dores e aleijões de todo o jeito, com todas as partes do corpo dispostas como uma outra Guernica do Picasso, me faz retornar ao estado de consciência vigil e força-me a procurar tarefas adequadas a esse nível como, por exemplo, escrever postais. |
||
De manhã, depois de me levantar, ainda vou ter que dar despacho a muitas coisas dentro de casa. Enquanto me espreguiço, e raspo a unhadas a pele coriácea da existência a ver se encontro algo lá por baixo, abro as portadas do quarto para deixar entrar o sol, e deparo-me com a película branca de geada que cobre toda a paisagem e sinto o frio cortante a trespassar-me a cara. | ||
Feitas as despesas do pequeno-almoço, o meu e o dos bichanos, lá me vou, todo empacotado, estilo cebola, a inspeccionar os estragos da geada. Desta vez foi um arbusto plantado no início da Primavera, três exemplares dispostos em sítios diferentes que haviam crescido magnificentemente, com as suas folhas do tamanho de orelhas de elefante. Em dois dias apenas as folhas murcharam, passaram de verde claro a azul acinzentado e com a consistência de lenço de papel num balde de água. Ainda não havia sido taxonomicamente identificado. Esperemos pela próxima Primavera para ver o que se salvou e logo trataremos disso. | ||
As coisas têm sido assim nos últimos dois dias. Hoje há um sol envergonhado, está o chão todo molhado, até debaixo do alpendre, e não se vislumbra uma ponta de geada. Possivelmente está mais quente. Mas daqui, com quase todos os termómetros de serviço debaixo dos cobertores, não se dá por isso. Vou ficar enterrado mais uns tempos a ver se dou um avanço neste postal. Afinal o dia até se recompôs e começou a mostrar uma cara agradável durante o almoço. Tinha feito um assado de legumes e na cozinha sentia-se o calor do forno e o aroma do assado. O almoço foi frugal mas reconfortante de modo que até deu direito a uma bica, coisa a que me ando a furtar nos últimos tempos. Os gatos não me podem ver a sair a porta da cozinha com uma chávena na mão que não venham logo a miar em ruidosa manifestação de protesto colectivo. Às vezes cedo a pedagogias malucas pondo-lhes a chávena à frente dos focinhos bigodudos para sentirem como lhes é desagradável o cheiro do café e reconhecerem que nem tudo o que serve para mim serve para eles. Conceitos destes não penetram crâneos felinos nem os corações sensuais das gémeas angorás. Viram-me as costas indignados e vão-se deitar à meia sombra dos arbustos do jardim. |
Saí bem disposto para trabalhar. Andei a transplantar umas couves para uma cama definitiava na extrema sul e, depois, fui buscar uma mangueira para as regar. Aproveitei a deixa para regar grande parte do jardim. Por pura diversão, empurrava também com o jacto da rega as folhas tombadas dos carvalhos para as bermas dos passeios. Caíam em abundância não sei bem porquê. O som simulava o da queda no chão dos pingos anafados da chuva, mas não chovia. Era elas a caírem todas as mesmo tempo. Aprecio muito esta característica do carvalho português, a marcescência, que o torna diferente das outras árvores - nem perenifólio nem caducifólio: as folhas vão-se desprendendo mas permanecem ainda na árvore, durante longos tempos, enquanto se formam folhas novas. A dada altura caem todas em sequências rápidas como o arroz arremessado sobre os noivos recém-casados. | ||
O resto do tempo passei-o na mata a recolher folhas e ramos secos caídos das árvores e a levá-los para o local onde se irá fazer o próximo composto. É varrer com a vassoura de jardim, arrastar os montículos com o ancinho, apanhar para o carro com a forquilha, atestar e compactar e, ala, lá vamos nós, eu, o carrinho e os gatos que nos acompanham para todo o lado, percorremos os caminhos da mata, passamos no eixo norte-sul à sombra dos marmeleiros, a pisar os marmelos negros e engelhados que se acumulam no solo, até entrarmos no campo ensolarado a norte do pomar onde vou dispor os materiais nos montículos de ramos de poda e de erva ceifada que lá se acumula. | ||
Já ia bastante adiantado na quantidade de trabalho que me havia proposto fazer quanto desabou uma fonte bategada de água. Recolhi a casa. | ||
Apesar de ser ainda muito cedo decidi que não havia nada mais a fazer lá fora. Tomei banho e vesti o pijama. Quando assim é, acontece o inevitável. Só me deito alta madrugada. Agora é outro dia, levantei-me muito tarde e estou a despachar este postal que fala de quatro dias a que chamo hoje. |