"o diabo criou o mundo e deus vai engoli-lo". No contexto da relação dos demónios com o mundo, qual é o significado de "engolir" ? 

Não me recordo de ter visto aquele termo nos escritos de Rodrigo mas estou tão familiarizado com a expressão que a utilizei num postal que enviei por este blogue em 8 de Março, fez sete anos, uns tempos depois de ter terminado a frequência do curso de mestrado em Ciência Cognitiva, O postal intitulava-se "entregar ao nada na posta restante do planeta" e a expressão que empreguei era "engolimento da realidade". A ideia geral era a de que a realidade se está a desertificar na razão inversa da sua virtualização e propunha a minha visão de como combater essa desertificação. 

Estas ideias só farão sentido se se perceber como é que se passa no cérebro o nosso encontro com a realidade. A descrição que se segue não esgota a questão e pretende ser um resumo muito simplificado, tolerando muitas imprecisões e omissões

Um estímulo suficiente para ultrapassar um certo limiar de um receptor nervoso situado na periferia do nosso corpo provoca uma inversão do potencial eléctrico no ponto de estimulação (troca de iões positivos e negativos no interior e exterior da membrana) e esta propaga-se ao longo da membrana do neurónio até uma sinapse que o relaciona com outros neurónios. A sinapse é um ponto de descontinuidade (uma espécie de cavidade onde se situam terminais dos neurónios envolvidos) por onde não passam sinais eléctricos mas em que é possível fazer uma propagação por meios químicos. Chegada a descarga eléctrica ao terminal esta vai provocar a ruptura de umas pequenas vesículas contendo químicos (mediadores químicos) que são lançados na fenda sináptica. Estes químicos vão atingir os terminais que se encontram na sinapse e "abrir", ou não, o processo subsequente conforme o tipo de químico e o tipo de terminal postsináptico, em que o primeiro funciona como "chave" e o segundo como "fechadura". No caso de se verificar uma correspondência, o neurónio vai iniciar o processo de despolarização que pode ocorrer ou não de acordo com as seguintes condições: ou o estímulo acabado de receber é suficiente para ultrapassar o limiar do neurónio e a propagação desencadeia-se, caso contrário não; ou outros neurónios pré-sinápticos juntam a sua acção estimulante (ou inibidora) e dá-se a adição algébrica de todas essas estimulações cuja soma algébrica determina se vai haver disparo ou não. O processo vai ser prosseguido conduzindo influxo nervoso a várias zonas do cérebro que o interpretam como uma sensação (cores, formas, sons, sabores, odores, pressões mecânicas, dores, temperatura) e as sensações são processadas de modo a permitir-nos interpretá-las como objectos subsistentes num mundo exterior. O processo é idêntico para os estímulos produzidos pelo nosso próprio corpo que estão na origem das dores de barriga, sensação de esforço, palpitações, sensação de febre, comichões, o que nos dá um relativo conhecimento do nosso corpo. Certas combinações de estímulos externos e internos produzem comportamentos automáticos rápidos (emoções) e podem ser interpretados cognitivamente a posteriori como sentimentos. Alguns estímulos morrem em respostas motoras super-rápidas (reflexo rotuliano provocado pelo martelinho no joelho), outros sobem a instâncias superiores para produzir comportamentos motores elaborados ou desencadeiam o lançamento no sangue de hormonas que vão actuar à distância noutros pontos do organismo. Os processos cognitivos complexos são a reelaboração em background de estímulos actuais provocados pelos sentidos e pelas memórias e participam na construção dos nossos conhecimentos do organismo e do mundo. Um número reduzido destes processos cognitivos é consciente, quer dizer, são acompanhados de experiência subjectiva (cores, dores, orgasmos, sentimentos, pensamentos íntimos) sugerindo que há, para além do cérebro, um agente cognitivo, um sujeito, um EU, que os suporta. 

O quadro aqui esboçado descreve apenas uma situação normal idealizada. Na prática podem interferir processos geradores de uma visão distorcida da realidade. Drogas como o álcool, a nicotina, o THC, a cocaina, os opiáceos e outras funcionam como "chaves" falsas para abrir "fechaduras sinápticas" e simular situações que não correspondem à realidade (alucinações, delírios). Certos processos de ordem superior podem agir em modo top-down e interferir no processo "normal". É o caso de crenças, superstições, preconceitos, erros lógicos, escassez de informação, informação falseada. Em última análise, pode admitir-se a possibilidade de uma super-rede de computadores apossar-se dos cérebros humanos e criar a ilusão de que vivemos numa realidade que, de facto, não é real. Nesse caso, viveríamos mergulhados numa realidade puramente virtual.

Rodrigo em vários escritos aponta para três realidades virtuais (ele, dada a sua formação biológica, chamava-lhes "os três reinos"): O Eu (o sujeito virtual), Deus (a demonologia virtual), o Mundo ( a realidade alterada por deus para ser virtualizada no Eu). E salientava de se tomar Descartes a sério e desconstruir a dúvida de uma forma que para ele fosse aceitável: nada de res cogitans, res infinita ou res extensa. Em nada disto há res, realidade.

Deus vai engolir o mundo? Acho que Rodrigo quis dizer que deus vai engolir a realidade real e digeri-la em mundo puramente virtual. "O tempo esvazia-se de tempo. O deserto nasce." (em O deserto)

 

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