Escrever não é o meu forte atualmente. Até aqui, escrevia cartas que enrolava no interior de uma garrafa que lançava ao imenso mar da blogosfera. É aquela ideia muito antiga de que há, no infinito do universo, criaturas inteligentes capazes de decifrar os nossos sinais e suficientemente conscientes para entender os nossos gritos de alma. As minhas cartas destinavam-se a desconhecidos bem mais perto, situados na infinitude da nossa proximidade. Mas, ao ponto a que isto chegou, escasseiam os singulares humanos capazes de edificar um lugar nas suas existências, aptos a colocar máscaras que individualizem pessoas suportes de ação e prontos a resistir ao engolimento da realidade. A blogosfera foi arrasada pelas redes sociais, cemitérios da comunicação, do bom gosto e do património civilizacional.
O deserto urbano estende-se por todo o planeta injetando todo o tipo de drogas que contaminam as sãs consciências e liquidam as vidas. Cada vez mais reduzem-se as possibilidades de resistência. Os derradeiros recursos tornaram-se mercadorias. O planeta está à beira da falência. Então esta que venha fulminante e depressa para levar também consigo os abutres que a precipitaram.
Vou, então, escrever cartas para o nada, o vacúolo desta porção do sistema solar que será limpo pelas defesas do universo eterno. Resistirei enquanto puder no meu baluarte que é o Tremontelo, que é ainda um lugar, um sítio para acolher pessoas e não a um ecrã de virtualidades. Onde a realidade é ainda real, porque resiste ao homem e é-lhe indiferente. Onde as pessoas, humanos e gatos, ensaiam máscaras e representam. Onde as plantas se batem por solo, água e sol. Onde a passarada e as esferas celestiais registam os seus cantos no interior do silêncio imperativo.
Passei uns tempos, estes dois últimos anos, a decifrar na Universidade os mistérios do conhecimento, esse estranho processo que nasce e se alimenta nos cérebros, sejam eles animais ou artificiais. Fiquei na dúvida se o conhecimento não ocorrerá também nas plantas, seres aparentemente destituídos de cérebros, pelo menos como nós os entendemos. Acho, por puro palpite, que as plantas têm inteligência suficiente para construir conhecimento. A ideia não é aberrante. As plantas diferem dos animais pela ausência de mobilidade e a sua motilidade apenas as adapta ao sítio onde se enraízam. Quando muito, são conduzidas passivamente pelas marés ou os ventos e os seus pólenes são transportados pelos insetos, passarada ou nos pelos dos mamíferos. De resto, constroem as suas existências sedentariamente, o que as impossibilita de terem um corpo que as individualize. Sem um corpo, e sem cérebro, não têm um eu. Primeiro, porque não têm um cérebro que possa produzir o eu. Depois, sem corpo, o eu não representaria nada. Logo, as plantas também não têm consciência. O grande problema é se um ser artificial, puro software ou um mecanismo autónomo, um robô, pode ter uma consciência artificial. A questão, a que ainda não é possível dar uma resposta cabal, mas existem indícios de que sim, conduz a um intrigante mistério: uma prunus spinosa ou umrubus fruticosus não sentem dores, não têm orgasmos, não vêm cores, não percecionam objetos, não fazem planos nem decidem executar ações, o que em princípio é possível, em condições que ainda hoje não são claras, a um robô.
O grande mistério ultrapassa, em várias ordens de grandeza, os grandes pequenos mistérios: afinal, para serve a consciência na economia do universo? Sobretudo a consciência alargada, capaz de viajar no tempo e de formular mistérios, espantos e admirações. Porque não há de o universo limitar-se a ser como é, sem ter o incómodo da carraça humana a questionar a sua natureza? Um questionar efémero, instantâneo e mortal. Todavia, um questionar.
Afinal, uma carta não é senão isso: um questionar. Poderia continuar no Tremontelo a podar, montar, plantar, enxertar, regar e manter a consciência reduzida ao nível da sensação de afago do pelo de um gato ou da dor de um espinho encravado na carne. Todavia, escrevo. Porque questionar é necessariamente uma interpelação. Mesmo quando interpelamos o nada.