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Um dos argumentos mais canhestros que podemos esgrimir para desbaratar qualquer pensamento de que discordamos consiste em proclamar que o nosso oponente só está a ver as árvores e não consegue topar a floresta. O oponente, chamemos-lhe um arborino, prende-se a pequenas minudências, perde-se no detalhe e só consegue lobrigar o todo ao cabo de um interminável e insano esforço para reunir as peças separadas. Do outro lado, o florestino, digamos, estipula a floresta num estalar de dedos sem quase olhar para as árvores.
Para clarificar este diferendo, começarei por convocar a vossa atenção para uma diferença ontológica fundamental: enquanto o discorrer sobre as árvores se refere a entidades reais que percepcionamos no mundo material através do nosso corpo, falar de uma floresta é enunciar um conceito apenas realizado nas nossas mentes ou, quando muito, pronunciar o nome de um lugar. Dá para ver, após os incêndios, que as florestas não passam muitas vezes de lugares calcinados, com a cor cinzenta da cinza, sinistramente áridos como os desertos. A floresta lá está, embora as árvores se tenham ido.
Esta mania de calcar um oponente, acusando-o duplamente de só olhar para a realidade do mundo material e de não dar a primazia às entidades verbais do mundo conceptual, domina o panorâma intelectual do homem moderno, dito sapiens. Este universo antrópico abomina o individual, o detalhe, a parte, o pedaço. Admira e envaidece-se com a generalidade, a banalidade, o fútil. Tal tradição de pensamento insere-se na pesada herança do platonismo e posteriores abortos, em que o geral é mais real do que o particular, e o verbo se faz carne para que esta venha a ser flagelada e crucificada no calvário da história e justificar toda a pulhice humana. É agravada pelo cogito cartesiano em que o mundo físico é renegado através da dúvida, procedimento metódico para consagrar o solipsismo do sujeito consciente no panteão do ser.
Ver a floresta, orgulham-se os florestinos. Mas que floresta? A floresta do explorador ou a do passeante? A floresta do silvicultor ou a do madeireiro? A floresta do pirómano ou a do bombeiro? Cada um vê a floresta à sua maneira de acordo com o seu ângulo de observação e os seus interesses pessoais. A floresta que é um todo e que está para além das árvores não existe.
O processo arborino de conhecimento e de comunicação, tipicamente bottom-up, é muito útil para pôr de pé configurações dinâmicas da realidade, mas pode ser exasperantemente enfadonho e esgotante, sobretudo se o arborino não for capaz de pôr um travão à necessidade mental de exaurir os detalhes.
Graças à Internet, vivemos numa era de comunicação multilateral capaz de criar imensas sociedades virtuais com laços de muitos para muitos. Assim é também para as árvores. As verdadeiras florestas não são abstrações das árvores. São, pelo contrário, redes de intercomunicação entre elas, delas com as outras plantas, com os fungos, as bactérias e os animais.