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Gatos e outra bicharada
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Andava, não sei se a mondar, não sei se a ceifar - porque a ceifa, dizem, é de cereais e a monda, de ervas daninhas - quando ouvi um tonitroante coaxar. Não me pareceu vir daquela coisa verde de cerâmica que trouxera do Palais de la Découverte, com painel solar às costas e voz de rã de falsete ao passar-lhe um corpo móvel pelas beiças. Apresentava uma claridade sonora comparável à da imagem visual de muito alta definição. Era também de uma agudeza acústica tão fina como um florete de luz fria a trespassar o corpo. Fui ao lago ver. Nada.
Seria, fora de quaisquer dúvidas, uma daquelas miragens acústicas que exprimem o desejo de comunhão das almas solitárias. De gadanha nas mãos fazia-me às ervas uns passos à frente. Dizem que para a frente é que é Lisboa, não sei porquê, reconheço que não sei mesmo porquê, e nem adivinho porquê Lisboa. É um objectivo, uma visão que nos norteia (mas se estou a norte de Lisboa porque não hei-de então estar a norte de todos os meus objectivos como Afonso filho de Henrique quando virou costas à mãe e foi espadeirar a mourama?). É que a coisa está mesmo no andar para a frente e não olhar para trás, como a mulher de Lot. Persistir no esforço e na disciplina do querer e só olhar para admirar a breves trechos a transformação operada pelo nosso acto, seja tranformar a selva num jardim, seja outro acto heroico clandestino do nosso quotidiano.
Estas coisas vai a gente pensando, quando a tarefa é árdua e longa. Os pensamentos são o ópio e o lenitivo da fadiga dos músculos e dos ossos. O tempo não é a medida da acção que passa, é o encurtamento da distância. Vais na A1 para o Cartaxo e pensas: faltam 20 Km, faltam 10 Km... Viras à direita e estás quase na portagem. Depois tomas a estrada para Almoster (Al Monasterium), um dia voltarás para ver o mosteiro e deixares-te intoxicar daquela neblina medieval que o rodeia.
Estamos nisto, a pensar as ervas com os braços, a mondar o tempo com a mente, e o coaxeio irrompe de novo criando todo um grandioso silêncio à sua volta para se evidenciar.
Ele há rã.
E ao fim de mais três tentativas, havia. Imponente, expunha-se ao sol em cima de uma folha de nenúfar. Espreitei-a de todos os lados do lago, ora furtiva, ora ruidosamente. E ela ali estava pespegada indiferente aos meus desconjuntados arremedos de truão.
"Fica-te aí", disse-lhe, dirigindo-lhe o pensamento.
E lá fui a correr para casa à procura da minha Nikon digital. E regressei a correr directo ao lago testando as pilhas, a objectiva, a posição do selector. Lá estava ela, castanha sentada em verde, postada em atitude hierática como a esfinge do Nilo. Pareceu-me ter feito um breve sorriso quando disparei o flash. Continuou imóvel, rodando apenas os olhos, em pose de modelo.
Passados instantes (o instante é a eternidade misturando-se no tempo) conversámos.