Deveu-se o caso do meu acordar cedo demais, esta madrugada, ao facto do piscar intermitente da luzinha de aviso, na minha estação metereológica, de possível formação de geada. Com efeito, as três localizações dos sensores exteriores apontavam para temperaturas negativas.
Tal acordar não era ingénuo. Em vez de sonhar, como faz qualquer cidadão decente enquanto dorme, eu estava a pensar sem saber o que fazia. Uma vez acordado, eu continuava a pensar sabendo que o fazia. O estranho, o que não acontece com frequência nos sonhos, é que os meus pensamentos eram bastante estruturados e faziam sentido. Estavam como que dispostos em macinhos em cima da mesa de trabalho. Quanto mais eu acordava, eles deslocavam-se para um lado e para o outro a fim de se disporem de forma mais ordenado como fazem os soldados em ordem unida.
Não é fácil apresentar a totalidade dos detalhes da minha ideia pois precisaria de horas para os escrever a todos e de uma memória prodigiosa para retê-los durante todo esse tempo. Pese embora a falta de detalhe, vou tentar dar uma visão sumariada dela.
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É sobre os ventos da história, o destino da humanidade, a relação entre os movimentos regionais e a globalização, os vírus e as suas propagações, e outros assuntos que estão debaixo da língua e que a seu tempo virão certamente. Ou não.
Comecemos pelos movimentos regionais. Para explicar o que entendo por região é necessário que nos situemos num ponto qualquer do espaço onde haja uma comunidade de sapiens. Para começar, seja uma aldeia. Numa aldeia há pensamentos individuais resultantes de experiências individuais. Há também pensamentos partilhados resultantes de trocas de experiências. Aqui, não deixo de pensar na aldeia do Asterix transportada para o espaço compreendido entre o Tigre e o Eufrates. Entre essa aldeia e as mais próximas, há viajantes e correios, encontros festivos e lutas, que permitem ainda a partilha de pensamentos e a formação, outra vez, de um pensamento comum. O que é partilhado tende a consolidar-se por conformismo social e pela autorealização de profecias. O que não é tende a conformar-se ao espaço mais limitado de uma vida singular ou a desaparecer. Seja uma comunidade alargada uma comunidade maior que as aldeias com que iniciámos esta viagem ficcionada ao passado. As comunidades alargadas envolvem também os grupos nómadas que se movem entre elas. Há então propagações de pensamento, vindas de todo o lado, para formar o todo, ou seja, uma vez mais, um pensamento comum. Há limites geográficos, naturalmente, como seja a língua, a organização política e a religião. E há instrumentos para forçar esses limites, como o comércio, a deslocação de populações e o exército, e o expansionismo pelo conluio dos três factores aludidos. Há forças centrífugas e forças centrípetas devido à formação de centros (políticos, religiosos, económicos, intelectuais) onde se operam normalizações (por legislação, por exemplo, por persuasão, pela força). O crescimento territorial dos centros não sei se é a razão do alargamento da sua influência, se a sua consequência. Provavelmente as duas são o mesmo. Os grandes centros estão necessariamente em contacto, seja por itinerário terreste, fluvial ou marítimo, ou por deslocação de pessoas, de artefactos ou bens consumíveis por esses itinerários. A pesar das barreiras linguísticas, religiosas ou políticas, há ainda um pensamento comum partilhado. Pensemos numa onda que se forma algures no mar e se vai desfazer numa praia. No limite, não há mais propagação. A praia é o ponto de confluência, de encavalitamento e de posterior apaziguamento de distintas ondas que se opõem. Usemos então a metáfora: um movimento regional é cada uma dessas ondas e a região a localização do seu deslocamento no espaço.
Situemo-nos num ponto do espaço qualquer, seja por exemplo o Mediterrâneo de há três mil anos atrás, mais século menos século. Chamamos às civilizações maioritariamente semitas a leste do Egeu o Oriente. E especificamos que se trata do Próximo Oriente porque nos sentimos, de certo modo, envolvidos nele. O Ocidente, a região em que nos situamos, emerge do choque das populações indo-europeias que por aqui andavam com o pensamento oriental. Esse choque deu-se na Grécia com a invenção do pensamento racional, de novas experiências de organização política e uma nova estética que fizeram o seu curso e se impuseram. Chamaram-lhe o milagre grego.
Acresce que tornou-se um centro de propagação. Propagação para leste com a helenização. Para oeste com a romanização.
O Ocidente é criado a partir do Oriente. O pensamento nasce no oriente e morre no ocidente seguindo o curso solar. A diáspora judia e as invasões árabes são novos retornos do oriente ao ocidente. O ocidente a norte do Mediterrâneo torna-se cristão e a sul muçulmano. À tensão leste-oeste junta-se a norte-sul.
Mais tarde, juntar-se-lhes-á o Extremo Oriente e o Extremo Ocidente com o emergir de grandes potências (China, Japão, Estados Unidos), as revoluções industriais e duas guerras ditas mundiais.
O pensamento tende a disseminar-se na forma de senso comum. De certo modo, o senso comum é uma maneira de sentir e um conteúdo sensorial partilhado, senão por todos, por uma larga maioria. É natural que o modelo heliocêntrico faça parte hoje em dia do senso comum das pessoas, pelo menos de uma parte delas que é alfabetizada. Os progressos no conhecimento, e sobretudo do conhecimento científico, têm um peso acentuado, mas não decisivo, na alteração das percepções e dos juízos do senso comum. Pequenas alterações na maneira de pensar agem como mutações em processos evolutivos. Se encontram um meio adequado, ou se o meio habitual sofre alterações catastróficas, impõem-se ao modo habitual de pensar, ao mainstream, alterando o seu sentido geral e impondo um novo paradigma. Isso acontece sempre que um meio está preparado para receber essas mudanças. Como aconteceu no norte da Europa com a protestação do cristianismo tradicional. Não se tratou tanto de um protesto, mas da aceitação da culpa como uma condição prévia para a assumpção da liberdade individual. Norte e Sul no contexto intra-europeu.
É óbvio que toda a gente pensa de forma diferente na medida em que cada um pensa à sua maneira. Mas, as diferenças na forma de pensar resultam da situação particular de cada um e são muito parcelares. E mesmo na multiplicidade das diferenças há muita comunalidade nas maneiras de pensar. É o pensamento de grupo. Mas há um núcleo duro que resiste à diferença é que tende a ser permanente. É o pensamento default que sustenta o senso comum.
Do indivíduo e da aldeia chegámos ao Mundo. E, com a chegada ao mundo, acreditámos viver um pensamento global.
Devemos interrogarmo-nos sobre se esse pensamento global existe, de que se compõe, qual a sua real dimensão e qual a sua relevância comparando-o com os pensamentos locais em qualquer escala (região, aldeia, indivíduo).
Reparemos no regresso dos pensamentos regionais no contexto de um mundo globalizado. Os pensamentos regionais só subsistem quando em tensão. Mesmo que a tensão tenha adormecido há mais de um milénio. Então, dá-se o retorno da jihad.
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Enquanto alinhava estes pensamentos, o sol tinha irrompido e cintilava nas frestas mais altas das copas das árvores elevando-se com um calor ainda morno a Oriente. Porém a Norte, em toda a extensão da horta e do pomar, estava tudo impregnado de um gelado manto alvar. Tremi com frio. Entrei para a tepidez do quarto a repor o quantum de sono que me faltava.
Isto foi há coisa de um mês atrás. Há dias assim!