O exílio, que nunca experimentei, ou a reforma, que vai dar no mesmo, é uma espécie de não estar bem aqui. Não estar bem, não como oposto a não estar mal, mas como um certo não estar completo, um certo não estar rigorosamente.
Há um estar aqui nas terras de origem que se compraz apenas no cumprimento das expectativas inerentes ao estar aí nessas terras. Isto falando em geral; pois, em rigor há uma única terra de origem que é a do eu, falando cada um de si. Se te afastas, confrontas-te com modos de estar que te são alheios e ficas como que sem jeito. O aqui em que te passas a mover é estranhado, movediço, sem fundações. Mas só para ti e nunca para os outros. Então, dás-te conta que és um estrangeiro lá onde te encontras. Não estás em, apenas vives em. Isso, ao cabo de um tempos de exílio, vai levar-te a sentires-te igualmente estranho lá no sítio de onde vens. Um sítio de onde és, mas em que não vives, paira lá em cima, como o céu e o inferno dos crentes. Quanto se experimenta a estranheza, e não interessa se se é deslocado ou retornado, ela enraíza-se. A pergunta "quem sou eu?" metamorfoseia-se numa pergunta sem sentido se não há sentido para o "onde sou".
Onde tu estás é onde está a tua língua. A língua transporta consigo todos os significados e representações de uma vida. A vida é feita de longos pedaços de monotonia, que te estabiliza os pés sobre a superfície do chão, e neles a vida não vacila, porque se enraizou o suficiente para resistir a todos os ventos e vendavais. Mas é feita também de rápidas sacudidelas que tudo mudam e que, ou deterioram e arruinam uma vida, ou a prolongam na exploração encantada de novas e imprevistas vias. No exílio, não sei. Mas, na reforma, a língua é onde se exercita o solilóquio dos pensadores desamparados que tentam reatar as experiências passadas numa unidade de sentido, tarefa que parece impossível na medida em que as memórias são todas elas centrífugas e dispersam-se no além, nos pontos do espaço carentes de matéria.
Quando se viaja num país estrangeiro, e esse país não é a Espanha ou a França, esses países aqui ao lado, cujas línguas são filhas de uma mesma mãe e de uma mesma história, que também o é da nossa, mas se viaja para além de qualquer cortina ou muralha em que as línguas se distanciam em sonoridades, significações e experiências, e, sobretudo, quando a viagem não tem um propósito definido e se deve antes ao acaso, e é esse o caso da minha estadia estes dias em Krakow, sabe-se o que é estar fora, sabe-se que este lugar não é o nosso, nem pode ser, e que jamais o será.
A estranheza definha o humano que há em nós. Qualquer lugar pode transformar-se numa estação interplanetária onde se cruzam diferentes espécies que respiram em diferentes atmosferas, comunicam de diferentes maneiras, têm outros modos de conhecer e amar. Os gatos do Tremontelo têm mais humanidade que os sapientes com que me cruzo num lugar estranho, mesmo que estranheza do lugar se mascare de vizinhança um pouco mais distante. Chamar-lhe Espaço Shengen é confirmar o seu carácter distintivo de espacialidade. Não estou num país estranho, estou no Espaço o que, no ponto de vista da Terra, que é a nossa terra, é como estar no Céu, o lugar para onde se sobe quando deixamos derradeiramente para trás a nossa humanidade. E no Céu, essa terra prometida por todos os deuses e profetas, teremos todos nós o dom das línguas, o que quer dizer que não sentiremos a estranheza de sermos outros, mas teremos garantida a experiência de sermos irmãos do nosso próximo. Próximo?
Ser pessoa, ser o rosto público de um eu, é tudo o que nos resta quando nos despojamos da nossa natureza de sapientes. Os platónicos viam nessa natureza a carcaça a que estão amarrados os prisioneiros da caverna. A realidade em que julgamos viver seria, segundo eles, uma mera ilusão. O eu é de outra esfera, de outro tipo de realidade. O eu pertence à hiper-realidade.
Vários milénios de história, de experiência colectiva representada, definiram a hiper-realidade como o lugar do espírito, isto é, de tudo o que é indiferente ao meu sentir sensorial e ao meu agir muscular e glandular. É um lugar em que as plantas não lutam para sobreviver em condições ambientais adversas mas estacionam, perpétuas e floridas, nos vitrais de toda a casta de lugares espirituais. Krakow católica é um lugar cheio de igrejas e os seus sinos repicam com regularidade para nos lembrar que não somos deste mundo e que, neste mundo, somos apenas transientes. Em todos os lugares há dessas marcas, como Jana Pawla II, que o diabólico processo de eumerização converteu em deus local.
A tendência para renegar o mundo e a realidade estritamente real, isto é, a realidade das coisas por oposição às entidades imaginadas, é recorrente e não exclusivamente religiosa. A hiper-realidade tecnológica e agnóstica em vigor é a realidade virtual. Apesar de a virtus, com o significado de força varonil, competir com o spiritus, o sopro ou espirro divino, o estado de negação continua patente, com a diferença de que o eixo orientador do espaço hiper-real se deslocou do teotropismo para o egotropismo. E nada garante que a situação não se reverta, vivamos o tempo para o ver. Na minha opinião, o movimento histórico é pendular e alicerça-se na condição bipolar da mente humana. Deus e o Eu são as duas máquinas construídas pelo cérebro para conduzir os destinos do sapiens. E ambas estão em luta porque cada uma quer ser a outra.
Está-se o tempo a abeirar das seis da manhã e devo levantar-me cedo. Hoje é dia de fazer uma marcha matinal até ao jardim botânico local e a excitação tem-me mantido acordado. O nosso cérebro é uma máquina sofisticada e tem destas coisas.
Quem sou? Onde estou? São questões naturalistas ou metafísicas? Procuro não me perder. A essência do humanus é o humus, a argila moldável. Sou pó e em pó me reverterei. Sou animal, isto é, seria uma planta se não fosse consciente e dotado de locomoção. Tenho portanto que cuidar do facto de não ter raízes e procurar não me afastar demasiado para não perder a relação do lugar a que pertenço. Porque viajar é, em mais do que um sentido, perder lugares.