Deu-se o caso de este ano eu não ter ido a Lisboa e, por esse facto, não ter participado na manifestação do 25 de Abril.
Manifestar, porquê, para quê?
Ora, manifestar é dar a conhecer, é expor em público, é expressar. Dada a expressiva relação da palavra com a raiz latina " manus" (em português, "mão"), a minha definição preferida de manifestar é tornar palpável. Geralmente, acreditamos que aquilo que existe realmente, por oposição ao que subsiste apenas nos sonhos, é algo que nos é dado por palpação. Para saber que estou acordado, e que não estou num sonho, belisco-me e a resistência da totalidade do meu corpo à compressão exercida por essa sua parte que é a mão é prova suficiente de que existo, e de que existo de uma maneira particular, isto é, estando acordado.
Através da manifestação, tornamos patente a existência vigil daquilo que queremos expor. Só o que existe pode ser exposto, embora a maior parte do tempo subsista meio adormecida. O propósito de uma manifestação é acordar o que está meio adormecido, é espevitar a coisa para sair do seu torpor, é torná-la lúcida e vigilante.
Note o leitor, entretanto, que lucidez e vigilância são, precisamente, duas marcas da consciência. A manifestação provoca o vir à consciência e o manter-se na memória.
A outra parte da raiz latina é "festus" o que podemos traduzir, de uma forma ligeira, por "contente". É isso, precisamente, que nos sugere uma manifestação: não só compelimos algo a vir à nossa presença, a vir a público, como o fazemos de forma festiva, emocionada, feliz.
A manifestação do 25 de Abril é uma festa nacional e realiza-se em qualquer lado do mundo onde haja portugueses mas assume um principal significado quando se realiza na capital do País. Não por a capital ter algum privilégio sobre as outras partes do país. Se o 25 de Abril trouxe muito de inovador, uma das suas notáveis inovações foi a descentralização e a devolução do poder às comunidades locais. Mas a manifestação do 25 de Abril realiza-se na Avenida da Liberdade, e não no Terreiro do Paço ou no Carmo onde os acontecimentos de 74 agora evocados se deram. Nessa avenida, a manifestação torna-se a manifestação da liberdade porque é local que a reivindica e exige.
Gosto de sair do meu exílio em Santarém e ir a Lisboa manifestar-me no 25 de Abril. É o ponto de encontro de muitos amigos de diversos contextos da minha vida. Não foi esse o caso este ano. Por muitas razões e por nenhuma especial. Estou aqui vegetalmente plantado no Tremontelo e animalmente muito desgastado e, depois das chuvas tempestativas e do regresso súbito e em força da Primavera, o calendário do ano agrícola não permite mais interrupções . Fiquei por aqui a tratar dos meus cravos para que não murchem e para que voltem todos os anos por esta altura à floração, à sua manifestação de existência palpável e festiva.
Fiquei, entretanto, com o pensamento a vaguear sobre a Avenida da Liberdade, a matutar que era a primeira manifestação após os anos de travessia no deserto e a imaginar um mar de gente feliz a desfilar. Como já não se via há muito tempo. E, a matutar assim, fiquei à espera que a realidade me desse razão.
Ao pôr-do-sol andei a regar. As últimas chuvas já foram há uns dias e estes dias têm estado muito quentes. É que, à mais pequena distração, pode ir-se o trabalho de meses. Isso aplica-se às vidas vegetal, animal e cívica.
25 de Abril sempre!