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A televisão é uma caixinha de prodígios: encontra-se de tudo e nada é como na vida. Como tem a virtude de congelar no tempo, e de misturar, uma imensidão de imagens sacadas em diferentes correntes temporais, permite-se apresentar-nos em sequência um rosário de notícias desconexas deixando-nos com a obrigação de tirar daí o sentido como se tratasse de interpretar uma mensagem cifrada ou um oráculo.
Note-se que "rosário de notícias" é mais do que uma metáfora pires, é uma expressão deliberada; pois, se um rosário é uma fiada de rosas, as notícias, como as rosas, ou as demais flores, aparecem sempre iguais a si mesmas na mesmíssima altura do ano. À pergunta "o que trazeis de novo no vosso regaço?" só pode ser dada, por conveniência da proposição à realidade verificável, a seguinte resposta: "são rosas, senhor!".
Rosário de notícias é também uma expressão apropriada para esta época de Maio: é o mês das rosas e do rosário de Fátima.
Ouvi os noticiários de ontem com o mesmo enfado de sempre. O caso da Madeleine já deu o que tinha a dar e, para profunda insatisfação do masoquismo nacional, o fluxo migratório sazonal dos ingleses para o Algarve afinal não vai estancar, e nele se vão continuar a incluir reformados, desempregados, criancinhas loiras, pedófilos e pais abandónicos. Não dei conta que tivessem caído aviões, ou que Gaia tivesse posto os elementos em fúria. Os mortos no Iraque continuam a situar-se na casa das dezenas, e os feridos nas centenas, e a missão dos soldados portugueses no Afeganistão continua inalterada, debaixo do capacete da NATO que, por sua vez, está debaixo do chapéu da ONU. Fiquei vagamente a saber que só no futuro talvez distante teremos a confirmação do saldo real da actuação de Tony Blair. Lisboa continua a ser uma cidade branca e repleta de turistas. No paço da cidade não é a rainha que brinca ao esconde-esconde com os cortesãos; joga-se ao deita-abaixo e ao corta-cabeças, e cada um espreita a sua oportunidade de ir a jogo o melhor que pode.
Nada disto me deu pistas para descortinar qualquer desígnio escondido por detrás de cada "rosa".
No meu afã de pesquisar a verdade – não sendo a verdade outra coisa que o desvendar o que antes fora vendado, como sugere a palavra "alêtheia" no falar dizente dos antigos gregos – duas "rosas" me prenderam a atenção, uma pela suavidade da textura e do odor, outra pela agressividade dos espinhos.
Em Fátima, Altar do Mundo, uma peregrina é entrevistada pelo repórter de uma estação nacional. (Digo "pelo" dada a ausência do neutro como atributo morfológico da língua portuguesa, o que se aplicaria a matar a este tipo de profissionais de segunda gema, sem qualquer recorte de sexo ou de género, quer na apresentação pessoal, quer na maneira de questionar os entrevistados. Também são irrelevantes as perguntas mastigadas à pressa, pré-preparadas na escola do fastfood televisivo. Importante é aparecer o mais centrado possível na pequena caixa mágica, sendo as palavras uma espécie de música de fundo ao vivo, mas um luxo caro a usar com parcimónia). Que vem então a responder a peregrina? Que sim, que tinha uma grande devoção, uma grande fé, um grande amor pela virgem, e por todos os anjos, e por todos os santos. A religiosidade popular é a partilha de um sentimento que adere a verdades simples: o culto é a veneração e os seus objectos são a Senhora, os anjos e os santinhos. Uma mistura de panteísmo matriarcal (será ainda o culto de Gaia?) e de politeísmo primevo, meio pragmático, meio feérico.
Do outro lado do mar, Bento XVI e os seus mosqueteiros intensificam os preparativos para a cruzada do século. Aquém, com o antigo secretário de Estado do Vaticano, cardeal Ângelo Sodano, e além-mar, com o antigo teólogo Ratzinger, hoje papa, intentam atrair para a fé ("sem proselitismo", imagine-se!) os crentes desviados, denunciam a nova apostasia (“Nos nossos países, está em curso uma apostasia sub-reptícia que não pode deixar-nos indiferentes”, e exigem o público reconhecimento dos "contributos" do cristianismo para a construção da Civilização Ocidental e da Europa “tentada a esquecer aquela fé que fez a sua força no decorrer dos séculos”.
Recordemos então alguns factos históricos de “aquela fé que fez a sua força no decorrer dos séculos”:
- Código de Justiniano contra os heréticos (529)
- Cruzadas: séculos XI a XIII
- Bula de Lúcio III Ad abolendam (1184)
- Cruzada albigense (cátaros, waldensianos e templários): Séculos XII e XIII
- Massacre pelos cruzados de 20000 pessoas em Beziers (1209)
- Inquisitio Haereticae Pravitatis Sanctum Officium (1227)
- Judeus e mouros: século XV
- Malleus Maleficarum, ou "martelo das feiticeiras", de 1486.
- Massacre de Lisboa de 1506 (ou a matança da Páscoa de 1506), uma multidão movida pelo fanatismo religioso perseguiu, violou, torturou e matou entre duas mil a quatro mil pessoas, por serem judias.
- Reabilitação da Congregação da Inquisição ou Santo Ofício (1542)
- Index auctoreum et librorum prohibitorum (1559)
- Caça às bruxas: séculos XVI a XVII
- Guerra dos 30 anos: século XVII
posted by Perdido @ 1:47
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