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Ponho-me em bicos dos pés: nada vejo! À volta nada de útil a não ser uma velha cadeira desdobrável. Vou buscá-la. Tem uns oitenta centímetros de altura e um ar frágil embora a madeira, de pinho, ainda aparente uma suficiente robustez. Robustez é um termo demasiado forte, claro, porque só convém ao carvalho, o velho robur; é preferível dizer solidez! Desdobro-a não sem antes ter hesitado no tipo de operação a realizar. Basicamente é constituída por três peças que se justapõem ao fechar. Para abrir, uma das peças, a de maior comprimento que servirá de espaldar e de pés dianteiros, deve ficar hirta, erecta na perpendicular; as outras duas peças deslizam solidárias após empurrar uma delas, a inferior abrindo-se para formar os pés traseiros em perpendicular com a peça grande, que agora desliza um tudo-nada para a frente no sentido oposto, a superior que retoma a horizontalidade para formar o assento. Uma cadeira é uma coisa útil, serve para uma pessoa se sentar. É evidente que estamos sempre a dar utilidades novas às coisas úteis: uma cadeira pode servir de pequeno escadote para trepar a uma altura não muito elevada. Não o fazemos mais vezes por decoro: porquê pôr os pés, que andam no chão, num sítio onde normalmente nos sentamos? O assento é uma coisa sagrada, que não pode ser conspurcada: quer se trate do assento lugar do nosso corpo, quer se trate do assento lugar da cadeira. O assento é o lugar do poder e do privilégio: é o trono do monarca, a sede (Sé) do bispo, a cátedra do universitário. O assento é o lugar da morte e da ressurreição: é a “cadeira eléctrica”, é a cadeira do Salazar, é o sentar-se à direita ou à esquerda do Cristo, na Última Ceia, ou do Deus Padre, no Paraíso Celestial. O assento e o lugar são termos quase intermutáveis: quando pedimos para nos reservar sete lugares no restaurante, ou no avião, ou no teatro, no fundo, muito no fundo, estamos a pedir que nos reservem sete assentos. É certo que podem restar só lugares em pé – trata-se, todavia, de lugares de importância reduzida, que nos amesquinham e nos lembram que estamos sempre a ser relegados para uma casta inferior, a tornarmo-nos pessoas de segunda como negros num Apartheid. Mas pôr um pezinho é coisa a que às vezes nos atrevemos. Não se trata de “pôr a pata em cima”, acto de uma extrema brutalidade, de uma rudeza de bárbaros com tranças e bigodes lanudos. É só pôr um pezinho! O outro vem atrás, de mansinho. E, se está alguém a ver, até tiramos os sapatos por reverência. Não é o meu caso, estou descalço e tenho que subir. Pôr-me em bicos dos pés não resulta: nada vejo!
Monto-me finalmente na cadeira de pinho, que até nem está desengonçada; além de sólida, é firme. Serve perfeitamente para os meus propósitos. Alongo a coluna como vi fazer aos gatos, estiro o pescoço em curva na direcção da janela e espreito.
Um jorro de luz intensa obriga-me a semicerrar as pálpebras. É pleno dia, concluo. Do outro lado, paredes brancas, nuas, intensas, reflectem. Como a Lua, cogito. A luz reparte-se de igual por todos os cantos do quadro; as sombras não obedecem a perspectivas, são planas, são como que luz recatada, meditativa, ensimesmada. Não há pessoas, não vagabundeiam gatos nem cães, nas árvores alinhadas não cintilam as folhas prateadas por cair, nem revolteiam folhas já caídas ou a cair. Pressinto uma falta. Será que se pode pressentir uma falta? Que uma falta ainda não é enquanto não se descobre o que falta? Ou devo dizer: sinto uma falta. Como se a falta fosse já actual e positiva, um absoluto, e não a ausência de qualquer coisa que ali viesse a ser colocada num instante intemporal para ser, no mesmo instante, negada. A falta é o lugar do desaparecimento, da ausência, do abandono. Reflicto nisto enquanto dou voltas aos meus pensamentos. O que deveria estar ali e não está? Desisto de olhar, os objectos não nos aparecem por varrermos os lugares. É como a memória que queremos dizer e não podemos porque a temos debaixo da língua. O melhor é não insistir, pensar noutra coisa. A memória voltará quanto menos se espera.
Desço a cadeira, cansado da tensão muscular, e sento-me. No quarto semi-iluminado não há nada a não ser a cadeira, o meu corpo e a janela. Há pouco estávamos os três em processão – a cadeira, eu, a janela, numa continuidade que ia do interior para o exterior. Agora, a janela está lá em cima a advertir-nos que há algo lá fora, que esse algo se revela numa luz intensa e que, todavia, outro algo falta também. Nós, o meu corpo e a cadeira, cá em baixo, numa comunhão de assentos. “Nós” que termo interessante, reflicto, plural da primeira pessoa do pronome pessoal no caso nominativo. Este termo, “nós”, faz do meu corpo e da cadeira um colectivo pessoal: o meu corpo-pessoa, a minha cadeira-pessoa. “Nós” é um círculo num diagrama de Venn que mete lá dentro duas pessoas. Pessoa, personna, “o que repercute o som”. No teatro e na vida social, aos lugares que repercutem o som chamamos personagens. As personagens desempenham papéis que alguém escreveu para eles e proferem frases. Dizem aquilo que se espera que digam, de acordo com o seu papel e estatuto. Portanto, estamos aqui duas personagens, a minha cadeira e o meu corpo unidos pelos respectivos assentos, desempenhando, melhor ou pior, não sei que papéis, sabendo que algum som perpassa por nós.
… perpassa por nós. Perpassa o quê? É isso, é isso mesmo, é o som, era o som que faltava lá fora!
Levantei-me, ajeitei a cadeira que encostei à parede do quarto, alcei-me em direcção à janela, aparelhei as orelhas e escutei: era o som, ou melhor a falta do som… que estava ali, sempre estivera ali, até de me dar conta da sua presença como falta, de me dar conta da não presença do som.
Lá confirmei as paredes brancas, a luz tépida das sombras, o imobilismo das árvores de copas projectadas no azul intenso do céu. Não, não se ouvia nada. Apenas um cenário de filme mudo. Um mundo luminoso mas impessoal, sem máscaras. Algo não batia certo: onde há movimento, há vibrações acústicas que o cérebro interpreta na forma de sons. De certo que não havia ensurdecido, assim, de um momento para o outro. Para o confirmar até comecei a assobiar, mandei para o ar duas ou três palavras. Primeiro, daquelas que são certinhas, com certificado de qualidade e apólice de seguradora, que não ferem a sensibilidade das senhoras de idade e classe médias, que não despertam a mórbida curiosidade da polícia secreta, dos espiões e demais profissionais da escuta; depois, não fossem estas palavras, vagamente ciciadas, das que não são ouvidas por ouvidos de pessoas sérias e honestas – porque o autêntico ouvir não está no deixar entrar mas no atender o que entrou – comecei a usar termos grossos, dos que são atribuídos aos camionistas e aos trolhas, dos que são usados pelas mulheres ditas de má vida para estimular a cupidez dos clientes, proferidas com articulação pausada e sonora, que atravessam o espaço e vão perturbar no céu a concentração dos escribas que anotam os nossos pecadilhos no livro do juízo final. Não precisei, porém de mais testes para me certificar de que não estava surdo, que não estava em mim a razão por que não ouvia o som lá de fora. Simplesmente, se não ouvia era porque, ou o som não estava lá, ou algo impedia que chegasse até mim.
Se um percurso é interrompido pensamos automaticamente num obstáculo.
Sabemos que não é assim com a nossa vida: será interrompida e pronto! Pelo menos julgamos que será assim, porque deduzimos de outros casos que já presenciámos no passado. No meu passado há muitas mortes e poucas interrupções de vida. As mortes são notícias do obituário, uma página especial dos jornais, ao lado das notícias da política, do trabalho, da economia, da vida mundana, do desporto e de outras veleidades. Às vezes são notícias centenárias que nos lembram existências passadas de santos e heróis, de bandidos e cobardes. Mas estas não vêm ao caso para o fim dos meus raciocínios: não falam nunca das pessoas comuns, pessoas como a gente. Interrupções de vida, que eu registasse, houve poucas: a do Rui, filado pela droga e posteriormente internado em instituição psiquiátrica, aprendeu aí o gosto pelo álcool e morreu hepático; a do Luís, regressado da Alemanha com muita idade a trabalhar no duro, sempre disposto a uma história interessante, um dia chegou cedo ao trabalho, bebeu uma cerveja fresca e passou-se; a do Zé, de quem fiz meu amigo no dia em que o conheci, que na semana seguinte sentiu uns pequenos tremores na pele das mãos e, passado um ano, estava completamente imobilizado, respirando a pequenos tragos o ar, até que os músculos da garganta se cerraram inertes garroteando-o; a do pai que, nunca bebera uma gota de álcool, se deixou afogar nas águas insalubres do Tejo; a de outro Zé que conheci também no trabalho uma semana antes de se lhe partir o cordão umbilical com a vida, a esforçar-se até à última em preito de fidelidade a uma multinacional canina; a da engenheira Palmira, pessoa de afecto e merecedora de muito respeito, mas não respeitada pela vida que a ceifou prematuramente e sem negociação nem aviso prévio; a da madrinha Leninha, minha companheira dos passos que ensaiei em primeiro lugar, a mediadora entre a minha inexperiente infância e a maturidade distante dos meus mais velhos. Os outros casos foram casos de morte, como o dos avós que iam, um após outro, ano após ano, denunciando o contrato com a vida; como o dos camaradas abatidos em África, surpreendidos pela ceifeira fora do seu tempo e do seu espaço. A maioria dos casos era de mortes normais prognosticadas em todas as tabelas actuariais.
Tirando o caso da vida, que pode ser interrompida sem mais, sem algo a estorvar o seu percurso, qualquer outro percurso só poderá interrompido pela interposição de um obstáculo. Não estando surdo, por que é que o som não chegava até mim? Onde estava o obstáculo que o impedia? Olhei outra vez: o quadro permanecia o mesmo, inalterado na sua composição e qualidades, diria até que parecia uma fotografia, um poster como os que os adolescentes colam nas paredes dos seus quartos, que estava ali a tapar a janela para impedir que visse o lado de lá.
Deixei-me, por momentos, ceder à tentação do cepticismo. Haveria mesmo um lugar habitável para além do meu quarto, conforme me mostrava a minha janela? Ou seria a janela apenas um poster de quarto de adolescente, ali pegado à parede por aquela espécie de plasticina azul que se mete em cada canto e um pedaço no meio para o colar à parede, ou arrancar se for preciso?
Cheguei-me à frente movido pela curiosidade, pelo cansaço, pela aura de uma claustrofobia iminente. Senti o nariz a esborrachar-se e a regelar e uma mancha leitosa provocada pela expiração do ar quente toldou-me a percepção das paredes brancas intensamente iluminadas, das árvores e das sombras semidespertas. Registava ali uma aparição inaparente, uma barreira anti-som, uma visão camuflada, uma presença ausente: era o vidro.
Queremos ver e não vemos porque está à frente dos nossos olhos. É um vidro numa janela, ou numa porta contra a qual esbarramos, ou as lentes dos nossos próprios óculos. Com a manga da camisola esfreguei a vidraça até não restar uma pinga de vapor. Só lá ficaram uns filamentos de lã enovelados a uma esquina da janela. O branco retomou a sua alvura, o sol a sua luminosidade, as árvores a sua quietude. Presumi o som que continuou a ser desautorizado pelo vidro. Fiz uma soma a giz no quadro negro do meu cérebro e inscrevi por baixo daquele quadro a seguinte legenda: “O exterior, a ausência inquietante do som e a presença do invisível”.
Desci. Dobrei a cadeira e arrumei-a ao alto a um canto da parede. O tempo passara sem dar por isso. O horizonte tinha começado a ficar rubro e a luz fora-se esgotando, de nascente para poente, pensei.