A curiosidade matou o gato?

in Neste Lugar

5 de Novembro de 20077

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A pré-ocupação gera o cuidado (cura) e este devém inquietação, necessidade de saber e inspecção diligente, o curius.

Como já afirmei, o fito da exploração é conduzir-nos à disponibilização de novos lugares. O tema de hoje - a curiosidade - pretende desvelar o mecanismo que nos move à exploração e desmontar a sua arquitectura para compreender o seu funcionamento e eficácia.

Quando se avalia, globalmente, o rendimento intelectual de uma criança, medido em termos de desvio em relação a um padrão etário de desempenho, tem-se em conta a extensão do vocabulário que ela compreende e é capaz de definir verbalmente. É um excelente indicador do nível da sua curiosidade e, indirectamente, um preditor do desempenho de que ela é capaz. Não se pode usar este protocolo com um gato jovem pela razão de que um gato não fala. Mas, como todos sabemos, há outros recursos para entrar em comunicação, quer com os gatos, quer como bebés de tenra idade infantes. De um lado, os recursos tecnológicos verdadeiramente simples de que as ciências do comportamento proveram os investigadores; do outro, os recursos poéticos com os quais, desde a sua alvorada, a humanidade tem comunicado com os bebés, os gatos e os demais entes que partilham a nossa companhia.

Dizer que os gatos são curiosos é um truísmo. Se os gatos pertencem de iure àquele lugar que designamos de humanidade, tal se deve, mas não exclusivamente, à complexidade da sua curiosidade. Gatos e homens irmanam num elevado grau de curiosidade.

A observação mais descuidada põe a curiosidade dos gatos bem no centro, em plena zona focal, da nossa atenção. Na quarta-feira passada andava a arrumar à pressa o meu lugar no Cartaxo para vir passar descansadamente o resto da semana ao meu lugar em Lisboa. Tinha acabado de lavar a loiça do almoço e estava a passar o chão da cozinha com a esfregona. Naturalmente, tinha a porta da cozinha, que dá para o jardim da entrada, aberta. Os gatos mais novos rebolavam-se na areia enovelando-se uns nos outros e interrompiam os seus jogos de cabra-cega e de escondidas para se amandarem de sopetão e em voo rasante sobre os mais velhos que imperturbavelmente esfingeavam solenemente na areia quente do jardim. O Mião postou-se na soleira da porta e, de lá, seguia todos os meus movimentos com os olhos e a cabeça. Exagerei o trajecto e o movimento da esfregona ao que ele correspondeu com o exagero do olhar. Se parava a esfregona, parava a cabeça dele e só movia o olhar para o balde seguindo atentamente o meu esforço para torcer a esfregona. A alturas tantas, passei a limpar a área adjacente à porta da cozinha e o Mião, adivinhando o percurso iminente da esfregona, esticou-se, ostentando um ar incomodado, e, lentamente, saiu porta fora ficando na rua a monitorizar a minha ocupação. Assim que ultrapassei a zona da porta voltou de novo ao seu local habitual de atalaia e continuou a inspeccionar-me diligentemente. Pressenti atrás dele o Bolinha e o Ratito a perscrutarem com os seus olhos esbugalhados tudo em que consiste a cozinha com os seus espaços, o seu mobiliário e equipamento e os infindáveis tarecos que povoam aquele inconfundível lugar humano.

Com o chão da cozinha a mostrar um aspecto muito razoável, e começando a água do balde a ganhar as cores indefinidas da sujidade, decidi aproveitá-la, enquanto possível, para lavar a tijoleira do pequeno alpendre da porta da entrada. Procedi às operações, despejei a água já num estado inconveniente, e dei a volta à casa para entrar pela porta da cozinha. O Mião, ao ver-me, deu às de vila diogo. Entrei e fechei a porta.

Não passara ainda o tempo de dizer um ai quando ouvi dois miados angustiados: eram o Bolinha e o Ratito que tinham ficado enclausurados dentro de casa. Para os leitores que ainda não provaram muita intimidade com os meus gatos, devo esclarecê-los que estes bichos só viram como tecto, em toda a sua curta vida, o céu azul e a barriga bojuda do tanque de lavar roupa adornado nas traseiras do "Anexo". Os pelos todos em pé, as gargantas estridentes, o susto estampado no rosto, os coraçõezitos a badalar desesperadamente nos peitos peludos, aqueles gatos metiam dó. Tentei pegar neles mas só piorei a situação. A tentar fugir-me, escorregavam de pernas abertas sobre a tijoleira ainda molhada parecendo aprendizes muito incipientes de patinagem no gelo com os patins a fugir para os lados opostos. Ao fim de algum tempo, depois de ter o discernimento de lhes abrir a porta da cozinha, fugiram parecendo que levavam o demónio atado nos rabos.

Continuei ainda uns tempos a minha azáfama de pôr em ordem a casa. Ao vir do banho para o salão pressenti uns sons meio abafados a que não dei grande importância mas que me forçou a convergir o olhar para baixo do móvel da televisão. No escuro, quatro olhos intensos fixavam os meus movimentos.

 
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