A resistente

22 de novembro de 2006

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Num destes fins de semana passados tive uma carga de trabalhos com os gatos. Vim estafado de Vale de Moinhos e valeu-me o feriado de quinta feira (o 5 de Outubro) para, enfim, descansar.

Cheguei sexta-feira à noite, como é hábito, e pus-me a executar aquele tipo de trabalhos que se fazem à noite, nos fins de semana, quando não apetece ver televisão porque não passa filme ou programa que prenda a atenção, nem dá para ler por estar demasiado cansado, e posso pôr quadros na parede, pendurar candeeiros, furar com o black-and-decker, arrastar móveis e pôr música aos berros por não haver alminhas, além de mim, num raio de trezentos metros. Actividades que podem incluir preparações culinárias, máquinas de roupa e estendal no mezaninho, passagem a ferro e arrumações.

Nessa noite, ao contrário do que é meu costume, não fui abrir as portas do anexo e do contentor, e fiquei em casa deitando-me tarde.

Devido ao efeito dominó, acordei tarde. Não tinha gatos a miar, passe a contradição, serenatas matutinas à porta do meu quarto, não tinha familiares a impor-me deveres de sociabilidade, não tinha compromissos profissionais, não esperava fornecedores nem prestadores de serviços, não havia rotinas domésticas ou de exterior que me compelissem a sair cedo da cama. Em suma, fiquei na cama a preguiçar, consciente e assumidamente, que é como a preguiça sabe bem.

Levantei-me e executei o processo bem estabelecido das rotinas matinais que, além de comporem o aspecto mais ou menos amarrotado com que se sai da cama, de tirarem a barriga de misérias e de tirar as misérias da barriga, têm por mais nobre objectivo o de consumir os sobejos de sono que nos acompanham na primeira hora de vida vigil.

Dado por bem sucedido o referido processo, e já vestido a rigor para os afazeres de exterior, saí apanhando deliciado com o ar confortável de manhã já bem avançada num fim de verão. Não compareceram à formatura gatos para acariciar ou para dar de comer. Fui abrir a porta do anexo, entrei para abrir as janelas e fazer o inventário mental do que ia precisar para aquela jorna.


Saí passado pouco tempo e fui abrir o pesado portão do contentor. Ao proceder a essa operação, em que é necessário escolher duas chaves elevantes e colocar as ranhuras na posição correcta antes de as introduzir nos respectivos cadeados, ouvi um miado. Mas um miado que vinha de dentro do contentor.

Mau! pensei. Nenhum gato sobrevive uma semana dentro de um contentor sem comida e sem água.

Abri atabalhoadamente aquela geringonça e vejo à minha frente o vulto negro e ridiculamente pequeno da Julieta que, uma vez safa daquela enrascada, usava as últimas forças para miar com maior estrepidez. Se ela já era magra, mais magra estava; se ela já era pequenitotes, reduzida estava à mínima dimensão que um felino pode suportar.

Muitos abraços, muitos carinhos, muitos miados, muitos roçanços, muitos ronrons, até dizer basta e lá vai ela para o lugar ritual da refeição de toda a tribo. Fui ao anexo buscar a lata, apanhada à pressa sem controlo de qualquer critério de dieta, e lá lha servi todinha para o recipiente da manja.

A desgraçada, esgalgada, morfou num ápice, seria carne, seria peixe? Seria paté ou uma jardineira de ervilhas e cenouras de que eles tanto gostam? Não o soube. Ela também não.
Comeu indo direito ao fundo da questão, que é como quem diz, ao fundo do prato. E sem procurar primeiro lamber-se, respirar fundo ou agradecer, desata num pranto a pedir mais. Ao que lhe disse, Julieta tem juízo, estás com o estômago fraquinho, ah... e tal! E não lhe dei mais, preferindo ouvi-la até se cansar.

Estava eu nesta, satisfeito já por ter feito um salvamento e praticado uma boa acção, quando oiço uma chuvada de miados a vergastar-me os ouvidos vinda do contentor. A Julieta, antecipando-se, pôs-se num ai no contentor e, quando lá chego, vejo-a rodeada de cinco marmanjos pequenitos, com as orelhas maiores do que a cabeça, e a cabeça maior que o corpo, a quem labia tranquilamente. Um ainda lhe farejou as tetas servindo-se aos sacões mas logo as deixou amandando-se em vôo circular, e com as unhas afiadas, para cima de um dos gémeos.

A desgraçada tinha estado uma semana a alimentar aquelas esponjas peludas!

A história desse dia não acaba aqui, mas deixo o resto para outra altura porque eu, eu próprio, não consigo deixar passar uma refeição em branco.

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