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O primeiro dia em Krakov foi nebulosa e teimosamente chuvoso. Calcorreei a cidade velha que, por ser circular, me obrigou a cruzar duas e três vezes os mesmos sítios. Não por ser perdido, timbre que me ficou mais por devaneios e elucubrações mentais do que por desvios em passeatas urbanas, em que erros, fortuna e amor se conjuram para nos infernizar o dia, mas por razões bem mais nobres que o bom nome, que devo defender, fazer respeitar e deixar ao abrigo de qualquer suspeita de insanidade, requer que sejam cientificamente fundamentadas. Pois dá-se o caso que estes percursos, aparentemente enovelados, ajudam a consolidar o mapa mental. Ora, o mapa mental, como se sabe, é construído predominantemente por processos bottom-up através de múltiplas hiperligações ponto a ponto, apesar dos bons serviços top-down que nos prestaria o Google se houvesse Wi-Fi em toda a cidade ou os antiquados mapas em papel se não tivessem a mania patológica de se enrolarem nos fundos da mochila.

O importante neste processo de intenso labor cognitivo é seleccionar três referências principais e começar a estabelecer ligações nas imediações de cada uma. Escolhi como referências a barbacam, a norte, a praça central, obviamente ao centro, e o castelo Wawel, debruçado a sul sobre o Vistula.

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Felizmente, sobrava ainda a Planty, circundando a cidadela, que funciona  como fronteira, como corredor e placa-giratória e como paraíso verde para repouso do corpo e alma do fatigado viandante. De igrejas, freiras e frades fica-se farto. Tem este país tanto zelo no culto divino que o deus católico tantas vezes o abandonou às mãos das potências vizinhas, cultuantes dos deuses luterano, ortodoxo e muçulmano, por andar enfadado de tanto correr de um lado para o outro a atender a tanta prece!

Perto do castelo e no regresso à praça central encontrei uma livraria com uma excelente atmosfera, montes de livros na difícil língua do país e alguns raros em inglês. Folheei, inquiri, avaliei, conferi os preços e comprei dois. Ao fundo, havia umas mesinhas e um balcão onde se encomendava. Sentei-me, acomodei a bagagem, pedi um mix de pieroguis de diferentes confeitarias e sabores, uma bebida de que não retive o nome, exótica mas excelente, um expresso e, claro, a password. Estava tudo excelente, a rescender a ervas hortícolas e especiarias, e ali fiquei a folhear os livros e a ver os e-mails. Paguei e vim-me embora para o hotel dando ainda uma volta e meia pela cidade a dar os últimos retoques no mapa mental. Com o erro é que se aprende, pensava eu. E tanto que aprendi naquela tarde!

Chegado penosamente ao hotel, arrastado por violentas cólicas e convulsões intestinais, resultado certamente do cruzamento entre as experiências culinárias e os movimentos peristálticos forjados pela marcha de mata-cavalos, ainda fui ao quarto, cuja porta não abriu, o que me obrigou a retornar arrastado à recepção para me remagnetizarem o cartão, desfiz-me do que sentia a mais no meu corpo, deitei-me e fiz uma breve viagem em sonhos pela cidade velha a consolidar, certamente, o mapa mental. No café do hotel, li e escrevi enquanto esperava pela Graça.

À noite, fui jantar com os colegas dela num restaurante local. Dezenas de pessoas desembrulhavam-se a falar numa língua que não era a sua e que, pessoalmente, detesto. Comi ganso com um molho especial onde nadavam pêssegos e umas batatinhas assadas feitas com muito artifício e saber gastronómico. À saída não chovia e as nuvens eram escassas. Amanhã, não vais andar por essas ruas a passear o chapéu-de-chuva, não vais não, pensava eu dentro do táxi em que regressámos ao hotel.

Sonhei com freiras com guarda-chuvas e com gansos a mandarem-se em voo das ameias do castelo de Wawel.


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