Olho para os rascunhos dos vários postais que prometi escrever, uns mal alinhavados, outros demasiado desenvolvidos, todos de uma chateza de desesperar, e decido-me a dar um olá ao mundo para dizer que estou vivo, e para eu próprio acreditar que estou vivo, sendo o estar vivo a única coisa que resta de valor, com o planeta como o conhecíamos a ruir e as relações entre os humanos a pautarem-se pela extrema exploração, saque e dominação como nunca visto antes, com o desplante, a soberba e a maré de ódio a transbordarem no retorno do fascismo, do populismo e do terror divino travestido de artifícios tecnológicos auto-declarados inteligentes.

Tem estado um tempo optimo, bom para os últimos trabalhos de exterior deste ano. A partir das cinco da tarde vem um frio de rachar e é nessa altura que recolho a casa e ocupo-me a organizar a documentação, pessoal e familiar, os meus arquivos e bases de dados. Um pouco de televisão para distrair, alguma socialização com os gatos e as tarefas domésticas preenchem o resto do tempo em que estou acordado.

Depois do ciclo diário de calor-frio, veio hoje o ciclo de seca-chuva. Como ainda é cedo, deixo-me ficar na cama a escrever ou a ler e a ouvir a chuva miudinha, única sonoridade que me concedo depois de ter proscrito a música, tanto aquela que é, como aquilo que tal lhe chamam.

Os gatos, coitados. Passavam o dia debaixo das sebes ao pé da porta da cozinha, em parte à sombra, em parte ao sol, a dormitarem, com a parte do cérebro que escuta e filtra os sons fastos que prenunciam iguarias. O Borboleta, mais afectuoso, provocava-me assiduamente, rebolando-se, ávido de festinhas e mais festinhas. Dorme à soleira da porta com a cabeça reclinada sobre os meus chinelos de andar lá fora. Cheira-os de vez em quando, confirmando que repousa sobre a representação inequívoca da autoridade humana, o que lhe permite dormir confiante e importante. Agora, não sei onde param, acoitados em qualquer sítio que os abrigue da chuva.

Agora vou despachar este. O bom destes postais e que não carecem de selo nem de preencher o destinatário. É só enviá-los e eles aí andam, à volta do mundo, à espera de serem apanhados por alguém.

A chuva parou. Parece. Ao menos, deixou de se ouvir.

 

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